Diários Noturnos

Diários Noturnos

12 de dezembro de 2015

Meu coração tem o ritmo de uma máquina de escrever

Para criar força e dança
para atravessar a si mesmo 
é necessário escrever.

Escrever para reapresentar 
e representear o passado, 
que não é sobre o que se passou, 
e sim sobre o que marcou 
impressões por todo o corpo.

Somos as marcas 
pressionadas
e impressionantes 
do tempo veloz.

Imprimo as minhas palavras 
que custam a pena 
que as escrevem.
E tenho pena do silêncio 
que não tem a força
de abrir os ouvidos 
dos que precisam de música.

Meu coração 
tem o ritmo
de uma máquina
de escrever excitada
por um par de mãos
que dançam sobre
as teclas.

As mãos que dançam
é o meu corpo impresso.
E o meu corpo impresso 
é a minha marca 
na roda-viva do mundo.

25 de julho de 2015

De Tim para cada Tom do vestido que eu visto

Visto um curto vestido 
e casaquinho de lã. 
Há coisa mais bipolar e amável

do que esse cenário
que me cobre a nudez?
Hoje li Manoel de Barros
e me senti mais sul-matogrossense
do que nunca.
Bateu um súbito querer
de tirar uma foto do céu.
Todo feito de cores de baunilha
em contraste com um claríssimo azul.
Tenho muitos nomes
da ordem do sensível.
Cada um para cada humor.
Cada humor para cada membro da família.
Cada cidade para cada corpo.
E paixão por coisas inanimadas.
Da palavra até a cor velha do telhado.
Hoje amanheci Luiza de Tom,
entardeci Cássia,
inteiramente na lembrança tatuada
de que São Paulo já foi meu sertão.
Estou anoitecendo réu confesso
(pode me acusar
de Irracional apesar da humanidade)
para sonhar rebeldias
quando a noite mais alta chegar.
Suada de culpa,
despertarei amanhã
em nova manhã.
Vou dizer "bom dia"
britanicamente em tom ateu
e rir tim tim por tim maia
do rosto que darei bem
de cara na boca do espelho.


Casa 165, 25 de Julho de 2015.

16 de julho de 2015

Dos dilemas astrológicos ou introspecção da lua nova

Para Oscar Angel





De um lado,
a casa oito da paixão
em escorpião,
Do outro,
o planeta Marte 
em virgem, oh Imaculada

Do sexo ao paradoxo:
sensível na metafisica dos corpos
sem ser vulgar,
a vênus em mim
finge utopias
e se desequi-Libra

Nunca se esqueça:
em cima de toda 
cama ocupada por dois
- ou mais - 
há um céu 
infinitamente panorâmico
que desenha mapas astrais 
perverso-polimórficos


como canta aquela canção esotérica,
mistério sempre há de pintar por aí



Casa 165, 16 de Julho de 2015


7 de junho de 2015

Eu te vi pelo buraco da agulha


Hoje eu costurei
três buracos
que se abriram
na meia-calça,
depois a vesti
e passei um batom
de vampiresco tom.

Eu não engano
a ninguém:
prefiro embelezar
o velho
do que adquirir
porção nova
das coisas.

Entretanto,
tomei nota
de um detalhe
que entorpeceu
a minha filosofia:

É tarefa
quase impossível
atar o nó
em cima
do outro nó
que já foi dado
na linha passada
em fina agulha.

Por isso é que não posso,
sequer consigo,
te amar duas vezes,
ou de dois diferentes jeitos,
nessa vida.

Nem se eu fosse marinheira,
teria saúde e paciência
para tentar tanto
que um nó se atasse
a outro nó de nós,
mas eu te vi
pelo buraco da agulha.

Quem sabe com o tempo,
arranjaria ardilosa sapiência
para trançar em ritmo corriqueiro
os assuntos antigos do coração.

Ou tomaria
vergonha na cara
para andar
de meia-calça furada
pelas ruas
que já pisamos,
juntos,
um dia.

Apartamento 830, 5 de Junho de 2015.

29 de maio de 2015

A TRAVESSIA POÉTICA DOS MEUS PONTEIROS


Procurando vestígios de meu passado em São Paulo, encontrei um disc recordable com uma playlist de músicas que eu mesma gravei em algum dia entre os anos de 2008 e 2010. Época em que eu cursava o início do curso de psicologia na PUC-SP. Coloquei o cd-r para tocar enquanto me preparava para fazer um banho de brilho nos cabelos. A primeira música que tocou foi Black Horses, de uma banda indie dos anos 90, fundada na cidade de Chicago, que se chama Gastr del Sol. Não me recordava dessa banda, muito menos do caminho percorrido internet a fora para então tomar conhecimento dela. Todavia, a música me soou extremamente íntima. Senti uma pressa de ocupar o espaço da casa quando ela começou a tocar. A cena se fez duchampiana: um aparelho de som philips portátil em cima de um bidê antigo. Estava sozinha em casa e abusei do alcance do volume do toca-cds. Com minha mania de registro, apegada que sou ao que vivo, pensei em fotografar a composição de como sobrepus os objetos: o som saindo do aparelho em cima de um sanitário ultrapassado. A câmera do celular estava no modo vídeo. De susto em surpresa, cliquei no play da câmera e no play no som. Bateu uma súbita vontade de sair dançando a música pela casa e o fiz, gravando os detalhes da arquitetura do cotidiano na tarde ociosa de uma terça-feira. Não fiz planejamento algum da captura, segui um brainstorming dos movimentos do corpo. Après-coup, ao rever a filmagem na música, fiquei feliz com um detalhe: consegui eternizar a cena de uma senhorinha gorda, com a coluna torta pela idade, em seu terraço. Essa figura sempre me trouxe a lembrança de uma circunstância medieval. Enquanto trabalhava no fim da minha dissertação de mestrado, longa estrada de horas e horas a fio em que eu me plantava na escrivaninha do meu quarto, que fica em frente à janela, de quando em vez ela aparecia para pendurar roupas no varal ou para regar suas plantas. Era engraçado observar vouyeristicamente essa velha em seus afazeres tranquilos e lentos no mesmo instante em que, a uns cincos prédios de distância, homens de capacete amarelo construíam outro concreto empilhado para arranhar o céu. Talvez não seja possível que olhos desavisados avistem a senhorinha. Ela aparece quando filmo o abrir da janela e enquadro a câmera para o lado esquerdo. A velha senhorinha, no vídeo, é uma coisinha torta e delicada vestida de branco, posicionada ao lado de uma escada reta de metal. Tenho alguma semelhança com essa personagem medievalesca: no dinamismo da era moderna em que estou temporalmente espacializada, me atenho aos contrastes do novo com o antigo e beiro ao exagero da dramaticidade. Nem sei se chego a ter vestígios de mim, pois, sinto que sou o tempo inteiro a atualidade do meu passado. Os ponteiros do meu relógio não marcam números: eles escrevem letras.

Link para o vídeo: 
http://rebeccaloise.tumblr.com/post/120034196379/composicao-video-texto-a-travessia-poetica-dos


Apartamento 830, 26-27 de Maio de 2015.

O percurso do vir a ser uma mestra acadêmica

Escreve, sofre, esvazia-se, mil e uma ideias lamparinas, lê até aumentar o grau da miopia, vive menos, reclama mais, aprende, pulmões feito balão de gás, escreve o primeiro parágrafo, confunde o semáforo, escreve a terceira palavra do segundo parágrafo, já não namora mais e muda de emprego, fala, comenta e cita trechos, autor, ano e o número da página, tem frio na barriga e mãos suadas, emite opinião, conquista amigas-irmãs, tem crises de riso e de dúvidas, depois chora toda uma chuva, pega o ônibus, e, por estar atrasada, consegue chegar no seu tempo singular.

Apartamento 830, 17 de Maio de 2015.

13 de maio de 2015

Epistemólogos do Pathos pós-moderno revelam

Teu cérebro
vai ao encontro
de teu coração 
e diz:
"você tem 
uma decisão
a fazer!"


Segundos depois,
o cérebro liquidifica
a seguinte 

indigesta notícia:

"Epistemólogos do Pathos
pós-moderno
revelam que 
os indecisos 
têm três corações."


Quando dei por mim,
sentindo os ecos neuronais,
um de meus corações
quis sair pela boca.

Fui parar na varanda,
segurando, em uma mão,
a xícara de café,
e, na outra,
um cigarro.

Passados cinquenta anos,
morri por causa
de uma unha encravada.

mEDO dO tEMPO pASSAR


se
eu
deixar
de 
lembrar
do
teu 
cheiro,
timbre
de
voz,
da
tua
pele
quente
de
tons
morenos,
do
teu
pau
enrijecido
e
vermelho,
de
você
cantando
i can’t get no satisfaction?
e
se
eu
me
esquecer
dos 
tempos
que
nada
me
satisfazia,
mas
tudo
me
desfazia
num
golpe
de
haraquiri?
(guardo comigo aquele canivete com um corpo de sereia tatuado. 
ela segura um sol com as mãos e eu queimo com o sal da idade nos olhos)
a
saudade
te
inscreve
neste
cenário
outonal
e
eu
escrevo
sobre
o
medo
do
tempo
passar.
ele passou
e
me
assou
entre
as
pernas.
não quero o velho, 
assim, 
assado.
guardo tudo como se fosse novo.
contudo, assim,
contida,
já não há mais espaço.
abrirei
um
caminho
quente
entre
o
ventre.
meu
filho
agora
se
chamará
futuro.
basta de orfandade!
o tempo
pode
não
ter
idade,
muito
menos,
ou
quase
nada de,
saudade.


23 de abril de 2015

Quando as vogais se mudam de casa

Entre o luxo e o lixo, duas vogais se mudam de suas casas. Em São Paulo, travestir-se de pano de chão é apenas uma questão de se esquecer para onde vai e por qual motivo veio.
Estou com a sensação de que tenho passado os dias amortecida, meio esvaziada. Tudo que me prometo, não cumpro. Chego atrasada no trabalho, não ponho as roupas para lavar, não arrumo o meu quarto, não envio currículo para sair desse estado de copo vazio que está cheio de ar, não vou à consulta marcada há um mês, não vejo os amigos de longa data, não percebo o amanhã chegar e ele está aqui, em presença, depois de ontens irracionais e contemplativos passados amarrotadamente. Parece-me que estou fora do mundo. Saí de cena. De todas: do facebook, das aulas da universidade, das salas de cinema, da minha casa. Ontem, quando chegou à pizza, eu coloquei a minha bolsa no ombro e esperei Tino, amigo que veio me visitar em casa, pegar a chave. Mas sou eu quem mora ali e: cadê minha chave?

Deslocada,
descompassada.
Fora de ritmo.
Nenhuma trilha sonora alcança
a distância que estou de tudo.
Eu tirei as cores da cidade. 
Não me sinto deprimida, me sinto opaca. Se alguém gritasse sobre um vulcão que resolveu entrar em erupção na esquina mais próxima, ficaria plantada onde quer que eu estivesse. Eu só sirvo para ser poema, não sirvo para ser jornalista nem garçonete, nem amiga, nem namorada, nem irmã, nem filha. Talvez para ser mãe, além de poema. Eu e os meus mil cuidados. Choro quieta pensando no que está por vir.
Andando pelo centro por volta da metade desse dia nublado, entre as danças dos que guardam a chuva, fiz a frase: “Hoje eu vou cair em mim”. Repeti algumas vezes para decorar no corpo. Eu tenho mil planos que não saem da planície das listas que faço sempre que encontro um papel.
Releio repetidas vezes o que escrevi até aqui para ver se alguma palavra pesca a minha inspiração. Não estou sabendo falar de nada mais afora descrições de como ando passando os dias. Podia parar de escrever porque não tenho assunto. Contudo, tenho a impressão de que a escrita pode me contar sobre algo que não esteja no terreno que habito, de que pela escrita eu possa atravessar daqui para outro lugar. Acredito que escrever tenha esse poder que física nenhuma traz para a experiência. Ou escrever é físico?
Quem escreve vive duplicadamente. Por exemplo, eu estou sentada como hostess em um restaurante, apoiada sobre uma mesa alta de ferro reluzente. A cadeira é feita de madeira maciça; quando sentada nela, a altura dos meus peitos fica na direção da mesa. O meu trabalho é receber os clientes que chegam, acompanhando-os até o piso do restaurante, e servir os que escolhem se sentar na área externa, apelidada “café”. A mesa alta de ferro está posicionada na porta de entrada do restaurante e eu estou atrás dela. Faz pelo menos meia hora que ninguém entra e não há alma viva alguma no café. Enquanto nada acontece, estou a escrever os meus pensamentos. 
Se eu não estivesse registrando as ideias que agora me ocupam, amenizando o tédio contemplativo, o dia passaria de uma vez só e seria mais fácil esquecer que ele existiu. Todavia, estou soletrando o avanço das horas passando por mim. Isso que faço é comometaviver metalinguisticamente. E sabe o que é pior? Acho que já escrevi conteúdo semelhante a esse que estou escrevendo. Se eu quiser, faço desse relato de diário um conto literário. É só eu me mudar de casa: da primeira para a segunda pessoa do singular. Do lixo que é perder horas por estar perdida ao luxo de ser personagem eternizada em formato literário.

Quando a primeira pessoa vira uma segunda do singular


Veio à Alberta a ideia, de repente, de que entre o lixo e o luxo ocorre apenas a mudança de duas vogais de suas casas. Depois de tal constatação, ela pensou que São Paulo a fez se travestir de pano de chão quando passou a se esquecer, aos poucos, para onde estivera indo e por qual motivo viera parar nessa cidade. Alberta estava com a sensação de que vinha passando os dias inteiramente amortecida, meio esvaziada. Tudo o que prometia a si mesma, não cumpria. 
Estava chegando atrasada todos os dias no trabalho, não andava colocando suas roupas para lavar nem arrumando seu quarto, cada dia inventava uma desculpa para deixar para o amanhã impossível o envio de seu currículo para novas oportunidades de ser-estar (de ser star), acumulando o sentimento de que o copo vazio está cheio de ar. Alberta, hoje cedo, não foi à sessão que havia sido marcada há um mês com a psiquiatra e já faz bem dois meses que não vê nem conversa com seus amigos de longa data. Ela não está percebendo que o hoje que está vivendo é o amanhã que já chegou. Está colecionando ontens irracionais e contemplativos, que passam amarrotadamente pelos calendários. 
Alberta está fora do mundo, saiu de todas as cenas: do facebook, das aulas na PUC, das salas de cinema e, quando está em casa, é como se não estivesse.
Ontem, quando chegou a pizza, pós-roda de maconha entre conhecidos e desconhecidos, ela colocou a bolsa no ombro e esperou Bruno, seu amigo que viera lhe fazer uma visita, pegar a chave. Mas ela é quem está morando ali e, obviamente, é quem tinha que abrir a porta.

Descompassadamente fora do ritmo,
rodopiando em volta de si mesma.
Tão distanciada de sua ventura
que não se escuta nem se lembra
de que um dia gostava de ouvir
Los Hermanos.
Alberta tingiu de sépia sem contraste
as cores da cidade, como
se a vida que chega aos olhos
pudesse ser um instagram.

Ela não se sentia deprimida, sentia-se opaca. Se uma cratera se abrisse embaixo de seus pés, andando rua a fora, apenas se lamentaria de não ter asas para voar e fugir de uma morte acidental. 
Alberta às vezes sente que só serve para ser um poema. Não está para ser psicóloga nem garçonete, nem namorada, nem amiga, nem irmã, nem filha. Ela minimamente confia na ideia de que um dia servirá para ser mãe, com sua vocação à sensibilidade e suas manias de cuidado à moda antiga. Ao pensar nisso, em ser mãe, toda ela se lacrimeja de emoção, fantasiando o cenário do futuro que pode chegar a qualquer dia.
Quando ela estava a caminho do trabalho, já com dívidas contadas pelos ponteiros do relógio, acelerando os passos pelo centro da cidade por volta da metade do dia nublado, equilibrando-se com o guarda-chuva numa mão, a bolsa na outra, escapou-lhe a frase em voz alta: “Hoje eu vou cair em mim”. Não entendeu o que isso poderia significar, mas repetiu para si mesma a frase, como se fosse um mantra.
Ela tinha mil planos que acabavam não saindo das inúmeras listas que escrevia à mão. Alberta tinha mania de escrever porque se preocupava muito com o alcance de cada palavra. Hoje, no restaurante, quando o movimento de clientes ficou fraco ou nulo, quando passou a não ventar sequer um fio de seu cabelo, Alberta se acomodou na mesa alta de ferro reluzente para escrever. Não tinha muito o que dizer, todavia, ficou fotografando com palavras a sua existência no espaço-tempo. 

31 de março de 2015

Loá, para a posteridade

Loá saiu do show das irmãs gêmeas, Taxi, Taxi!, com o sentimento de que as duas garotas carregavam um quarto escuro nos olhos. Ela não chegou a encará-las face a face. Não foi preciso. Tudo o que reparou nelas condenava que, sim, as moças eram trancadas numa escuridão própria.
Entrou pausadamente na sala de sua casa. Encostou a porta da entrada atrás de si como se estivesse tocando um piano, retirou com cautela a chave do buraco da fechadura e a pousou, logo em seguida, sobre a escrivaninha que ficava à direita para quem entra no apartamento. Os estalos desses mínimos movimentos eram barulhos silenciosos e disrítmicos, revelavam a inquieta paciência de seus gestos, quase robótica. Agia, em sua solidão, com a qualidade de quem estivesse sendo filmada para a posteridade. Como se não pudesse mais suportar a delicadeza solitária de fluir o instante após adentrar o recinto que ela mesma cuidava - por ter unicamente essa opção, não havia mais ninguém morando ali -, sentou-se na cadeirinha que ficava na varanda, ao lado do vaso de manjericão meio sem vida. O sol não alcançava os ângulos mais baixos de cada canto da varanda. Depois de um espaço de tempo, a planta morreu.
Às vezes Loá confundia o vento que escutava mais alto durante a noite com um assovio de gás vazando. Então, levava todo o seu corpo para a cozinha para verificar as bocas do fogão. Chegando lá se lembrava de que não havia posto nada para ferver ou cozinhar. Ela tinha pavor de morrer por descuido. A ideia de se aniquilar era uma máxima na gaveta mais difícil de abrir em seu cérebro. Sabia que ganhava a vida disfarçando de modo torto esse pensamento que vinha na frequência de toquinhos de martelo.
Loá achava que tinha a missão de desdizer as coerências inventadas pelo mundo ou por ela própria, acreditando que seus dentes enfileirados eram uma espécie de fuzil contra as verdades sustentadas como absolutas, e, por isso, falava, falava, abria a boca para emitir, quando podia, a sua opinião sobre as coisas. Todavia, embora procurasse um espaço para contar acerca de suas análises de cineasta sobre as composições de existência das quais tinha acesso, nem sempre conseguia se expressar. Loá andava nutrindo algum ódio pelas palavras. Fazia tempo que não consultava dicionários e até fantasiava que havia uma minhoca esmagada entre as páginas de seu dicionário preferido na poeira da estante do rack.
Além de falar, Loá escrevia. Em uma noite insone, olhou-se no espelho e desenhou com a força da imaginação a forma de seu corpo com verbetes enfileirados, como se ela mesma fosse inteira um dicionário. Pensou que falar ou escrever era um jeito de se despir. Gostava da crueza da nudez, pois, a nudez podia ser sempre duas coisas: inocência desprotegida e perigo iminente. Uma vez acariciou a sua coxa esquerda e se lembrou que dentro dela havia o fêmur. Teve a sensação rígida de ser ossos articulados por tendões. Ela não sabia dizer há quanto tempo estava correndo atrás de alguma coisa que lhe escapava toda santa e diabólica vez. Doíam-lhe as pernas e principalmente os tornozelos, Loá ia se dilacerando em sensibilidade pelos caminhos percorridos. Ela tinha a intuitiva sabedoria de que não se permitia fincar. Embora isto lhe fosse de fácil compreensão, não dava a mínima para entender a causa de não se permitir parar de correr. "Tanto faz saber o motivo disso", pensou, "a companhia da noite é uma de minhas poucas certezas que sei que durará por toda a vida".
Inspirou um cigarro de modo fundo, cavando toda a terra dos pulmões. Ao devolver o ar à atmosfera, disse em voz alta: "Tenaz". Quis escrever essa palavra. Procurando em suas miudezas e memórias o que substancialmente tal adjetivo significava a ela, completou, esbaforida: "tenacidade é um troço leitoso que me entope o estômago". Alcançou seu diário e, no momento de escrever, quase o fez com o cigarro. Refletiu que tal ato falho tinha uma raiz lógica: "a caneta também é cilíndrica". 
Na madrugada, tinha o hábito de contar as janelas acesas dos prédios. Por que diabos ela não se contentava com a noite, uma de suas poucas certezas? A noite nunca a deixaria, depois do dia, lá estaria ela. Para ela.
"Se eu chego em casa e não tiro os sapatos é pelo motivo de não me sentir em território próprio?", se questionou. O lugar dela não era aquele, por isso corria. Qual era e onde ficava esse lugar? A pergunta lhe veio enquanto degustava o grand finale do uísque. O black Johnnie. A cada vez que levava o trago do uísque até à boca, pingava uma gota gelada em sua saia. Usava aquela saia para seduzir, era viciada em atrair para si a atenção que suspeitava ter faltado a ela desde a infância. Nunca planejava o que fazer para lidar com os objetos conquistados e acabava por se sentir criando filhos órfãos; deixava-os todos, no fim. Em pleno sangue, fervido na colher de aço da vida, Loá carregava a impressão de que ela era um pouco desumana. Não tinha receio de enlouquecer, mas sentia sua liberdade como um purgatório - o lugar onde se sofre. Colecionava desconhecidos que tinham por ela amor e depois era tomada por um vazio de queimar saliva. Tinha regularmente a sensação ansiosa de boca seca e, para aplacar o deserto de si mesma, bebia. À noite. Sozinha.
Da varanda cheia de madrugada, ouviu um grito feminino vindo da rua de trás. A voz a estuprou. Se até, ou inclusive, o belo a violava, o que diria de um grito no silêncio dos tantos que dormem. E ela ali, acordada, comendo cigarros. 
Fazia tempo que não ia ao mercado e andava esquecendo há pelo menos três semanas das quintas de feira. A geladeira refletia a sua cara de sete buracos descobertos e escancarados para o nada e para a fome de se experimentar completamente fincada como uma árvore. De repente, Loá se sentiu enjoada de si mesma. Cambaleou até o quarto escuro e dormiu de rímel, lápis azul nas pálpebras e roupa de rotina no corpo. Apenas tivera forças para tirar os sapatos.



NOTA DA AUTORA


Não se soube em que pé de humor Loá acordou nem mesmo tem-se notícia de por onde anda correndo e com que pernas. Esse conto é a captura cinematográfica de uma noite da menina de 21 anos que não dava a mínima e se dava toda. 
Embora a autora seja o olhar que a filmou, foi Loá quem escreveu de próprio punho, em seu diário, o pedaço de uma de suas noites para a posteridade. Essas páginas foram encontradas no meio de um caderno de pautas musicais.




20 de março de 2015

A muda do jardim inflamável

Existem dias
que são noites.

À flor do fogo,
há uma escuridão
com a força
de um incêndio.

Resolvo a cegueira
para 
ver melhor
o vermelho
do núcleo
sem centro.

O que importa
na vida
é o que
nos escapa
do fim
dela mesma.

Sejamos
antes
que mortos
e apesar
de vivos.

A extremidade
é um
branco
mais fundo
que o oceano:

Tão real
que não sobra
fagulha alguma
de existência.

A hipérbole radical
que tem ombros
para todo peso
semântico-substancial
é o amor.

O que fica por dizer
aduba o amanhã
depois de uma
noite inteira
florescendo
a ferro e fogo.

Tem dias
e noites
que as palavras
me faltam?
se ausentam?
morrem?

Não durmo
nem acordo,
discordo
de tudo,
muda inteira.

A muda
do
jardim
inflamável.




24 de fevereiro de 2015

LINHA DO TEMPO DA QUEDA DE ALICE NO PAÍS DO TÉDIO

Para Amy, Hendrix, Janis, Jim Morrison e Kurt Cobain


Um
Dois
Três

Quatro
Cinco
Seis

Um
modo
de domesticar
o Nada

É contar
a queda
de Alice
no país
do Tédio.

Sete
Oito
Nove

Dez
Onze
Doze

Um
ano
inteiro
se passa
tediosamente:
Parabéns
 pelo seu desaniversário!

Treze
Drogada
Substituída

Dezesseis
Dezessete
Dezoito

Entrou
na faculdade
e aprendeu
a desaprender
o que até aqui
carregou como bagagem.

Dezenove
Vinte
Vint'e um

Mil e um crimes
passionais
levaram
sua culpa
aos tribunais.

Vint'e dois
Vint'e três
Vint'e quatro

Acha que gosta 
de menina
e de menino.
Foi carimbada
de bissexual.

Vint'e cinco
Vint'e seis
Vint'e sete
!

Entrou para
o rock
e rolou
até a morte
internacional.




13 de janeiro de 2015

Dois mil e quinze vírgula

2015, 
você tem 
um cheiro engraçado. 
Cheiro de sapato novo 
de borracha.

Andando por janeiro, 
vai passando pela calçada 
da primeira rua do calendário,
apagando as vírgulas do passado.

,
,
,

Meia nove



Um vaso
é um
abraço
no vazio.

Mas há 
o vazio
no vaso.

A boca
do vaso
é o ânus
do vazio.

9 de janeiro de 2015

Página arrancada do diário

14 de Dezembro de 2013.


Acordei com você. Data estranha. Passou um ano quase inteiro e parece que fiquei a me encarar no espelho enquanto o reflexo da vida cinematograficamente mudava o cenário que preenchia o ar por detrás das minhas costas. Uma solidão ensimesmada que acordava apressada todas as manhãs, maquiava-se belamente, recebia olhares - intocáveis -, estudava e trabalhava de se reinventar em papéis tantos - e tortos - onde o sorriso que esmaga as minhas bochechas, salientando-as, era o único lugar-comum do travestido cotidiano. Nunca deixo de sorrir, pois, já aprendi isto profundamente, sou esperançada e me espanto com esta vida grande e impossível. 

Sempre que me despeço de você cai uma lágrima do meu sorriso; as minhas íris caem na ansiedade negra das pupilas. Olhos que se tornam intocáveis e distantes. Não são intocáveis os outros olhos. Eu que, de tão pura, me afasto dos olhares. 

Ontem, quando andávamos intranquilos pela noite dilatada, você me disse que na época medieval quem frequentava as ruas durante a alta noite eram somente os santos ou os loucos. E ontem éramos nós, loucos e santos, num mundo que pelo exagero globalizado se fez medieval. Andávamos solitários, pisando medrosamente nas pupilas do mistério noturno. Toda pureza santificada é uma espécie de loucura, não é? De repente o espelho vira o cinema que antes rodava no ar por detrás das minhas costas. Ponho os olhos a fitar o ângulo mais alto que alcanço com a dimensão calculadamente delineada por um Deus santo-insano de meu corpo e toco o impossível que sou eu.

Acordo cansada quando durmo com você. Confusa que fico se estou já desperta ou se ainda sonho. Cante para mim, por favor, Strawberry fields forever? Venero religiosamente, como uma louca, a tua voz aveludada. Estou na realidade, contudo, cante cante cante até que eu caia nas profundezas do umbigo inconsciente. Living is easy with eyes closed.

I'll send all my loving to you,

R.

Fidelidade entre as pernas

Desde o meu primeiro inverno,
a madrugada é o espírito mais fiel
de que tenho notícia.

Vestindo vermelho ou negro,
tem, inacreditavelmente,
o mesmíssimo semblante.

Um pescoço alongado,
olhar de quem assiste
a mesquinhez da existência
de um altar pecaminoso,
lábios levemente rachados,
hálito amadeirado
e as maçãs do rosto
que dão nas vistas.

A madrugada não engana
que entre as suas magras pernas
há um vale profundo.

Sem hesitar em lhe dar a resposta 
para quaisquer que sejam 
as suas dúvidas,
a madrugada não joga sujo
nem foge a cara à tapa.

A madrugada não abandona,
ela permanece.
Faz do tempo, oh danada,
uma estátua infantil
pregada na testa.

Ourives do silêncio,
a madrugada trabalha
e batalha,
com sua navalha,
na escultura
utópica da solidão,
alcançando
a sua forma
mais fina.


A madrugada,
está beijando,
devotamente,
a minha boca
com a língua.

8 de janeiro de 2015

Por falar em paixão


hoje
a minha
coxa esquerda
me lembrou
a textura
dos teus
cabelos


ontem
o céu refletiu
as tuas pupilas
dilatadas naquele dia
em que eu te pedi
para me contar
quantos planetas
brincam de tirar
o chapéu da ciência
do futuro


amanhã
é outro
hoje 
que tão logo
será 
um outro
ontem
cheio de estrelas


(Em 7 de Janeiro de 2015, n
a manhã amanhecida tardiamente.)

3 de janeiro de 2015

Sentimento do Universo

In memoriam a Carlos Drummond de Andrade



Tenho apenas uma boca,
e o sentimento do universo,
mas estou cheio de silêncio.
Minha saudade inventa epopeias
e o tempo vive num corpo antigo,
na pulsação de um amor urgente.


Quando estava prestes a ir embora, a língua
no céu da tua boca pronunciaste:
Nada. Morto o meu desejo, morto
o tempo que deixaste manco,
saqueei a saudade e parti.



Os jornais nunca estamparam
a notícia de que se pode sofrer 
de um silencioso amor
como se sofre de pânico numa guerra fria.
Sinto-me na fronteira do talvez.
Anterior a certezas,
depois de ultrapassar a agonia da ausência,
afundo os pés na areia molhada de mar e me perdoo.



Quando alucinei teu corpo
boiando sob as águas 
de ondas sabor lágrimas,
joguei flores brancas no teu sexo 
e fechei teus olhos.
Acordei amanhecido da noite longa,


esse longo anoitecer
mais sonho que o sonho. 




Quem (sol) eu:

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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