Diários Noturnos

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18 de novembro de 2014

TREZE ANOS EM TRÊS TEMPOS

Os algozes jogavam dados na mesa do tempo.
Quem sabe o que apostavam?
(Cecília Meireles)

I
Infância

Se a menina fosse feita
de farinha integral,
não perderia
a integridade anímica.

- Ninguém me confeitou,
disse em tom
de quem está
em guerra interestelar.

Sem ouvir o troco
nem sentir uma faísca sequer,
pôs a cereja do bolo
no umbigo
como quem dança
na pulsação da corda-bamba.

II
 Idade da razão

Quem mais faz
a si mesmo
é quem se desfaz
dos próprios defeitos
para criar outros
com mais trejeitos.

Quem mais faz
a si mesmo
é quem dá de ombros
à desfeita alheia
para satisfazer-se
ao capricho de seu bel-prazer.

III
Florescimento

A sina da menina
com a idade da razão
é temer passar toda
a vida sem sair do forno.

Tão cedo encontrará
,
dentro do próprio umbigo
,
um mapa de linhas sinuosas
com o segredo:

Definir-se pronta
é vestir-se de foice.

Quando cair-lhe a ficha
da crueldade do medo,
descobrir-se-á tão livre
que ficará nua, e parada,
em frente ao espelho.

Aos treze, entorpecida 
após vislumbrar-se
fora do mundo,
a menina quedou-se
,
integralmente
,
úmida.



15 de novembro de 2014

PERCA AS CONTA-GOTAS


Só quem ama
ama mais ainda.
Ser derretida é
não estar retida:

Deixar pingar
as gotas da paixão
entre as pernas
amantes.

O que seria amar
senão a sorte
de perder
os anéis
e os dedos
sem indenização alguma?

O delito passional
é o único crime
que liberta
e não castiga
os infiéis.

Prenda-me

e eu te corto
a cabeça
com a precisão cirúrgica
de uma louca.

Ama-me

e eu costuro os fios
dos meus cabelos
nos pelos
do teu corpo nu.

Ama-me

e eu enfio
a minha língua
nos sete buracos
do teu rosto.

Ama-me

e eu te dou
o meu corpo
para o amor
de carne.

Ama-me

e eu te livro
do código penal
e da crença
na reencarnação.

Ama-me

e eu te-me-faço
mistério
em estado puro.

Ama-me


para amar
ainda mais.





11 de novembro de 2014

Há um nó na garganta do silêncio

"O resto é silêncio" - Hamlet na tragédia de Shakespeare

Para Julia Bicalho Mendes




Se eu pudesse
entregar a você
o meu silêncio
com as mãos
em concha
,

seríamos 
nós
um
oceano
pacífico
.

Mas

um

na
gar
gan
ta
do
...


- Silêncio!
É o grito
do suicida
místico
.

Afogou-se
pela âncora
de um navio-fóssil
em pleno mar
de ondas bélicas
.

No enterro
ninguém
nunca mais
disse nada
.

Na lápide
,
gravada
na pedra da
costa da praia
,
a mensagem da garrafa
pescada pela dor
:

Silêncio
é a palavra
que mais dura
na língua
.

8 de novembro de 2014

OS INSABIDOS

Para R.


Pouco sei sobre este homem. Conheci-o ainda menino quando eu, do mesmo modo trágico, também era menina.

O sol era um escândalo num céu azul cor de olho humano em pleno ano 2000, onde tudo era promessa de futuro ou apocalipse. O sol era um escândalo e supervisionava a cena estapafúrdia de crianças esquecidas, sem a tutela de crescidos quaisquer, muito menos daqueles que os puseram no mundo, numa piscina de clube em formato estratosfericamente largo, comprido e descomunal. 

Era uma sexta-feira apaixonada de verão em férias. 

Os amigos de Vinícius nadaram em direção ao miolinho das meninas; eu era uma delas. Os meninos se aproximaram, ele vinha lentamente logo atrás, espumando em covardia sobre as águas sabor cloro e urina. De súbito, um dos amigos dele bradou a notícia:

– Vinícius quer falar com Beatriz.

Como um balé olímpico acidental, enquanto os meninos nadaram para trás de Vinícius, num movimento gelatinoso que evidenciava a dúvida ética queriam deixá-lo à vontade com Beatriz, mas numa distância que favorecesse a captura de toda a circunstância, pois estavam, é claro, com os hormônios acesos pelo furor documental da idade , enquanto os meninos nadaram para trás de Vinícius, as meninas dançaram mergulhadas apenas passinhos tímidos para trás da escolhida (o queixo de uma delas quase se apoiou no ombro dela) por não estarem enganadas de que precisariam proteger Beatriz do que ali, naquela piscina oceânica, aconteceria.

Vinícius era você e eu, a Beatriz. Ao redor de nosso protagonismo, em um círculo torto, as crianças estavam atentas à cena estapafúrdia. O sol escandaloso queimava em nós, em cada sopro de fogo fatal, a puerícia. Todos queimados e molhados pela novidade que presenciariam. Os nossos pais, pobres inconsequentes, nunca mais nos conteriam a razão sentimental, pois passaríamos a saber de tudo do futuro promissor e do apocalipse depois de finda a cena.

De repente os meus olhos bastaram-se em alcançar somente a sua beleza. As crianças, numa mágica do amor, evaporaram. Qualquer coisa, pensei, digo que o sol as engoliu num rompante ou que se abriu uma cratera vulcânica nos azulejos frágeis da piscina do clube mal cuidado, levando-as todas ao centro cósmico Universal. Qualquer coisa assim, eu diria. Todavia, penso que, em verdade, em nada pensei. Fiquei a esperar.

A notícia “Vinícius quer falar com Beatriz” era de uma grandeza torpe e ecoava no meu corpo pequeno. Você, num embaraço revelador, afundava a cabeça para não ter que suportar a minha espera tão feminina. Não aguentava ficar afundado tanto tempo, por lógica biológica – não éramos peixes, aliás, você escorpião, eu leão, rimou – e voltava à superfície com os cabelos ainda mais compridos, por estarem encharcados, sob a bela cara. Eclipsava-se quase totalmente, somente não por completo porque, apesar do cloro e da urina, a água gentilmente ainda me deixava ver você. Depois passei a vê-lo até de olhos bem fechados. Mas antes do depois, a cena primordial.

Eu já estava no tédio e na desesperança e você, parecendo ter hidratado a coragem, emergiu das águas e me disse para eu ficar com você. Era ano 2000, você com doze anos. Onze anos eu tinha. Você, com seu futuro promissor. Eu, anunciadamente, uma apocalíptica de amor. Para eu ficar com você, você disse. Disse isto e abruptamente, em seguida à fala apaixonada daquela sexta-feira de verão em férias, afundou-se na piscina levemente blue, nadando feito peixe-menino para o outro canto da piscina longa, comprida e descomunal.

Antes de você se tornar o homem de quem pouco sei, teve aquele outro acontecimento. Sete anos depois do ano dois mil.

Você deu três indelicados socos seguidos na porta do meu quarto para me advertir que entraria. E entrou. Entrou todo cheio de passos largos, sorriso do gato da Alice, olhos com sombras. Eu estava deitada na rede cor da rebeldia, laranja e amarela inteira, lendo Rimbaud – Une saison en enfer. Já era outra cidade, o sol mal entrava pela janela, tanto pela arquitetura da selva de concreto, tanto pela época amarga do inverno. Fazia frio e na sua cama faltava lençol. Você veio me perguntar, fingindo respeito ao que eu carregava no peito, se por mim não haveria qualquer objeção a seu desejo de querer ficar a ler um texto para a matéria da faculdade deitado na minha cama. Você na minha cama e eu na rede. Era para eu estar obstinadamente dedicada aos exercícios de matemática para passar no vestibular, você, inclusive, cobrava-me os bem malditos estudos burocráticos, mas eu estava desesperadamente agarrada ao Rimbaud pelas mãos. Talvez para não cair na tentação dos nossos mau-ditos.

Você leu meia página do seu texto acadêmico e lamentou-se de dor nas costas, demandando, num tom óbvio, as minhas mãos agarradas nas suas costas e não em Rimbaud. Você era um ciumento incurável. Apocalíptica de amor, eu aceitei o seu lamento. Recordo a cena de você deitado de bruços na minha cama, o hidratante de morango e champagne da Victoria’s secret concedendo a dança dos meus dedos sob a sua pele das costas e, da ordem do irrepresentável, os fascínios de Ella Fitzgerald & Louis Armstrong vinham do aparelho de som e preenchiam o ar à meia luz. 

Naquela noite, a minha primeira vez, eu escrevi no meu diário que havia ficado grávida. Eu menti para mim mesma, mas, no profundíssimo corredor vertiginoso da minha identidade, eu sabia ser isto uma verdade. Em uma carta absurda que enderecei a você, depois que chegou de uma viagem para o exterior (de mim), eu descrevi o amor que carregava por você como sendo algo fisiológico na distância de meu início. Era exagero apocalíptico: os dois pontuais acontecimentos, agora epistolarmente desmascarados do rosto da minha ilusão, foram da ordem do encontro irremediável.

Aconteceu que o seu embaraço de menino fincou, melhor dizer, reconheceu em mim uma delicadeza com a potência máxima da feminilidade, que eu já sentia pertencer a mim, contudo, recusava-a por culpa precoce. Eu, tão corpo pequeno, boiando sob as águas sensuais da descoberta, carregava antecipadamente uma culpa e um juízo que a mim não cabia tanto pesar. Foi quase como se você tivesse me revelado a mim. E a vida, anos depois, por um acaso que desconfio, pôs-me a morar num quarto ao lado do seu.

Nesta época, eu, afogada na confusão da razão sentimental, entre culpa fulminante e desejo ardente, meio Antígona, misurderstood da cabeça aos pés, estava outra vez esquecida da delicadeza. E o seu olhar, você não soube disto pois eu não pude lhe contar, embora eu nunca tenha duvidado da sua sensível inteligência, desnudava-me de tal maneira que, ao seu alcance perceptivo, era insuportável ser a mentira apocalíptica que eu mesma fecundei em mim propositalmente. Impossível manter a farsa em presença sua, você que fez parte do encontro irremediável. Então, a cena: uma criatura nadando contra a maré forte, imponente e imperturbável da natureza maior: de.li.ca.de.za.

O filho não veio, eu apocalipsei sempre mais, o amor eclipsou. Mudei de quarto, de bairro, para bem longe de você. Contudo, de olhos bem fechados, eu fico pensando em que homem você se tornou agora que eu me sei mulher; e que você pouco sabe disto. Nós somos insabidos um ao outro. Eu não pude lhe contar. Quer me falar algo? Não se afunde. Não se eclipse.

Não se afunde, peixe-homem. Não se eclipse oculto na luz do verão. Não se afund. Não se eclips. Não se afun. Não se eclip. Não se afu. Não se ecli. Não se af. Não se ecl. Não se a. Não se ec. Não se. Não s. Não. Nã. N. (Silêncio)

         .

4 de novembro de 2014

Engordei o sol


Para Dahlia Dwek


Às vezes eu ando meio noite.
De tempos em ventos,
ando meio dia
até quando o relógio 
grita: - É meia noite!


Dei de comer e beber
ao sol noturno,
assim como Cecília 
deu de comer
aos pássaros 
e deu de beber 
à terra.


A palavra tem
mais fome
e mais sede
do que o homem.

Quem (sol) eu:

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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