Diários Noturnos

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11 de junho de 2016

Nossas línguas

Para V.

Se você abrir tua boca
eu verei dentes enfileirados
nas tuas arcadas dentárias
superior e inferior,
tua gengiva,
uma língua enorme
que me levará até tua goela,
passando pela tua úvula,
tua amídala
e faringe.

Se eu abrir a minha boca,
você entra num redemoinho.
Se eu abrir a minha boca,
é como se eu te fizesse,
com zelo e ternura,
usar uma roupa de astronauta
para suportar a gravidade
que é receber o convite
de adentrar a via láctea
que ocupa meu corpo.

Tua coragem é faminta
e engole meu coração fora do peito.
Se eu abrir a minha boca,
você, rapidamente,
começa a entrar neste redemoinho
que sou eu.
Seria mágico
se não fosse assustador:
não saímos do lugar e, de repente,
já não existe mais lugar.

Ao fundo,
o eco do estalo barulhento
da tua moto.
O que me interessa em ti
é que você se interessa
pelo que lhe é externo a você.
Rodas, motores, hard science,
jornais, mendigos, teu filho,
samba de 35, sauna de quinta categoria,
indígenas, crise política, minha angústia.

Gosto quem se perde fora de si.
É bonito quando você me segura,
mesmo eu rodopiando
sem contexto nem pretexto nem texto
no asfalto duro da realidade
(só cena histriônica),
cavando um buraco negro na terra,
pela palma da tua mão.


Você cobre a superfície
entre meu pescoço e meus peitos,
geralmente com a tua mão direita.
Nesses instantes –
em que a palma da tua mão tampa
o que vive a se dilacerar em mim -
me dá vontade de fechar a boca,
virar vento, e voar.

Ser o sopro leve de vida,
soltar o peso que elefantiza,
de maneira superegoica,
a minha dificuldade de presença.
Você não demora para chegar,
o que revela tua coragem.
Acendo velas,
procurando Deus.

Afunda nos meus olhos,
ri deles
e desdenha com humor
da minha amargura teatral:
Completamente anti-aristotélica,
fugitiva da matemática prática da vida,
pouco sei do meio-termo.

Uma vez abri a boca para gritar,
( noutra guerra que vivi)
---Ou amo ou vivo!
Difícil programar
duas tarefas ingovernáveis.
Além de anti-aristotélica,
sou anti-tecnológica
e anti-cronológica.

Não combino com o que passa na tevê
e não sei passar no tempo.

Quero abrir a boca para você enfiar tua língua.
Tua língua que fala a minha.
Sinta meus sabores,
aquiete meus dissabores.

A raiz da palavra organização
nasce de órgão.
Lembra-me que tenho corpo,
mil órgãos
e um coração fora do peito.
Faça-me funcionar,
neurotransmitir,
produzir moinhos para ventar.

Por amor,
me cale a boca.
Eu quero amar.

1 de junho de 2016

Poesia não assinada

uma hora para mim não dura nem trinta minutos
sinto o tempo correr nas bordas de meu corpo
como quem permanece
doando as próprias mãos

às gotas da chuva
um alguém que pode ser
confundido por estátua de praça

faz uma matemática
incalculável de tempo
que as nuvens
embebedam-se
promíscuas
de água ardente da chuva


e aqui nem é fim de mundo europeu
para tanta falta de sol


nem abrindo janelas
o ar podia ser respirado 
os azulejos do banheiro
suavam aflitos,
quase gritavam:
- Transfomai-vos, 

vós que sois gotas gélidas,
em vapor barato!

agora pergunto a ti:
quem mais, numa casa
abandonada,
tem ouvidos para escutar
gotas?

quem escuta o que não tem voz
gasta mais tempo para caber em cotidianos


aspiro saber toda ciência positivista
os quais, como, poréns
os dois lados adversários
e a possibilidade feliz da comunhão
de saberes
mas me negativizo inteira
diante do enorme nada
que mora nas coisas

me pediram para ver
beija-flor no lugar de teia de aranha
nem que eu nascesse outra
confundiria um beija-flor com a estética
desamparada de uma teia de aranha

não queira interpretar
nem contrapor sintoma com símbolo
a beleza não existe se não há olhar
que se doutrine, 

por livre e espontânea sensibilidade,
a vê-la

como Cecília,
fora do mundo e calada,
como Adélia,

com a bíblia entre as pernas,
eu estou antes do nome


o que não tem nem nome
é impossível ser objetivado

com delicadeza, 

permito que me chame de Coisinha

a única maravilha
que preenche
as células do meu tempo
é esse empilhar de palavras

meu corpo se emociona
como se estivesse num palco
três luzes cênicas
cor amarela
focando a silhueta,
mas todas as cadeiras da plateia

vazias

não escrevo poemas
à luz do olho alheio
seria algo pornográfico
pois fico essencialmente nua

fecho, paranoica,
até a porta
e as janelas
que dão para o externo


segura, pacífica
dentro deste espaço
protegido com fantasias
meus pés até formigam
para que tenhas uma breve imaginação
da natureza que há
nisto que faço: formigas,
um tipo de animal tão pequeno,

nos meus pés
- sem que eu sinta sequer a dor das picadas


ah! contudo, dor mais real bate
às cinco horas da tarde
na cidade

nem precisa ser São Paulo
dezessete horas
pesa mais que uma
bigorna nos ombros

falando nisso,
preciso de atividade física
e de rotina como quem 

precisa de medicamento
para suar a poesia que mora em mim
pelos poros dentro e aplicada 

à pontualidade
da vida burocrática

com delicadeza e discrição,
pode me chamar de Coisinha.
ninguém pode saber
que esta poesia tem autoria.


prefiro poesia não assinada
para que a minha verdadeira face

não morra assassinada 

algumas utopias 

me alimentam
mais que a marmita 

do meio-dia

toma este bilhete:

já são 17:17
Da sua eterna, 

Coisinha.





Quem (sol) eu:

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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