Diários Noturnos

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30 de abril de 2010

A vida cabe numa dose de cognac

Tu descasas os lábios & não reconheço o passado em que um dia fomos. Ou esse estrangeirismo não passa de outra fuga ou a vontade uma desonesta de quinta. Não recordo se a filosofia "se o silêncio torna-se constrangedor, sei que é amor" veio do divórcio da tua boca que dissertava, argumentava, discorria, corria trôpega entre o vácuo de conhaque que estendia nossa distância. Contudo, ai. Contudo, ai como eu queria te calar a fala.

Não me exagero ao dizer: na lixeira do quarto não cabem mais maços vazios. Por esse motivo impedi a tua entrada neste recinto. Ultimamente, isto aqui se assemelha a um hotel de centro de cidade. Embora a falta de impessoalidade. Volto se é para dormir ou me banhar. No momento em que toda a subjetividade se perde, cair em perdição em esquinas quaisquer é a tentação. Não me preocupo em trocar os lençóis ou limpar os cinzeiros. Ao invés disso, maldigo o estado destes metros quadrados com interpelações do tipo: "Hóspedes canalhas!". Como pausar a razão por vaidade à loucura. Quando embriagado costumo confessar que sou eu o estúpido inquilino de mim. Confissão esta que de algum modo me vangloria. Depois de Álvares de Campos, subi ao pódio. Todos os demais carregam a bandeira de semideuses. E, arre!, que não cruzem o meu caminho.

Mas, dando forma ao significante, acabo de me dar conta da minha falta de juízo. Devia ter sido cortês, apontando com delicadeza o corredor que te traria a este buraco. Adoraria te ver reprimir o arrepio da espinha perante o aposento desumano. Penso que não me demoraria no sadismo, te acalentando ao mentir: "Estou de mudança. Aporrinhei-me dos vizinhos, do porteiro que vive de me vigiar e de me atrapalhar a misantropia; a transação infernal do bairro me é também insuportável. Não tenho mais idade, afinal. A imobiliária já está tratando dos negócios. Com os francos da aposentadoria devo conseguir uma casa com pelo menos dois dormitórios." Depois, atentaria-me em notar a tua dificuldade de engolir a seco toda a farsa e, como se ensaiando uma solução instantânea, tosserias tímida para propôr: "O botequim da segunda esquina ainda vende o nosso Dreher?".

29 de abril de 2010

Demanda sem intento

A começar pelos meus pés descalços para casar à minha nudez, pela noite que passei em claro na tentativa de esconder qualquer vestígio teu do meu quarto, pelas horas maquinadas em feitos gratuitos para não recordar a falta da tua respiração despreocupada, pela pressa dos passos para o sem rumo que é toda a minha vida, pelos piedosos cigarros chupados com fúria, pelos meus ruivos despenteados para não desenovelar o teu suor dos fios, pelo sax tenor do Coltrane cuja importância deve-se à incorporação de um silêncio que eu sei de cor, pela água do chuveiro despencando no dorso das minhas costas querendo ser a última tempestade e até pelo vermelho do batom que não descansei dos lábios. Tu percebes o preparo para que cada detalhe de mim não chorasse a tua ausência?
Tencionei na pele uma leveza quando ao estender as cortinas já fazia um sol sem a tutela das minhas causas soníferas. Enquanto eu resolvia acontecer, o mundo já lamentava mais da metade da vida de um dia. E eu me sentia lucrando a liberdade de retardar a minha existência. O meu rebelde costume de pôr em vigor uma sobrevivência andrógina. Pois há sempre um desejo que folga a alma e aquele habitual desejo que tem a gênese da impossibilidade: esboço um grito e esvai-se uma canção, faço enchente de gozo no lençol e o líquido dos olhos ensopa os poros da face, sirvo delicadamente o copo de vinho a ti e termino por quebrá-lo justamente (& inescrupulosamente) sobre a tua genitália. Então, o substantivo androginia pelo caráter indefinido que o significado suscita e em que a libido se explica.
Escuta! Quem mergulha em oceano profundo quer invalidar os pulmões ou encorajar o corpo que circunscreve a alma? Não quero cair em misticismo. Longe de mim. A questão é que andam enfiando a razão onde não cabe. E a legislação humana ainda não considera isso crime. Pois é, é de desacreditar. Tantas unhas minhas quebradas por arranhar desesperada a terra vermelha, almejando o núcleo vulcânico e na-da. A solução é denominada Nenhuma para a Confusão de questões. Como combinam o oxigênio necessário em vicissitudes?
Agora me volto novamente a ti. Tua cabeça deitou morna sobre o meu seio por um durante gigante e tu não notaste que eu prendia esse infinito de vida no cubículo dos meus pulmões fumantes. Talvez o volume da vitrola estivesse mesmo alto, roubando-te toda a audição & outras sensibilidades. O que eu não acredito. É que, vejas bem, é extremamente complicado o fato de eu ter sacado que os dois corpos, o meu e o teu, que tomavam a dimensão da minha cama eram, na verdade, dois corpos que tomavam a dimensão de uma cama; sem subjetividade alguma. Por todos os acasos equivalentes em nosso modo de ser e de lidar com o que somos, a tua mão direita nem tentou encaixar-se à minha esquerda. Tu achas que eu possa ser descomedida? Revertendo a lei da física por um apelo cuidadoso? Ou pensas apenas que o romantismo ficou em outra linha do tempo? E que estou sendo trivial na exageração do amor? Não, não é sobre amor. É mais simples que isso. Por gentileza minha, atentar-me-ei em poupar teu intelecto. Quero dissertar sobre as implicações de um mesmo vento. Ao passo que em mim esse sopro natural destelhou cidades, em ti funcionou como uma brisa excitante. Será que tu já embebedaste uma dor notoriamente incurável? De quebrar tijolos e joelhos, de amanhecer sem reflexo no espelho?

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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