Diários Noturnos

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13 de janeiro de 2015

Dois mil e quinze vírgula

2015, 
você tem 
um cheiro engraçado. 
Cheiro de sapato novo 
de borracha.

Andando por janeiro, 
vai passando pela calçada 
da primeira rua do calendário,
apagando as vírgulas do passado.

,
,
,

Meia nove



Um vaso
é um
abraço
no vazio.

Mas há 
o vazio
no vaso.

A boca
do vaso
é o ânus
do vazio.

9 de janeiro de 2015

Página arrancada do diário

14 de Dezembro de 2013.


Acordei com você. Data estranha. Passou um ano quase inteiro e parece que fiquei a me encarar no espelho enquanto o reflexo da vida cinematograficamente mudava o cenário que preenchia o ar por detrás das minhas costas. Uma solidão ensimesmada que acordava apressada todas as manhãs, maquiava-se belamente, recebia olhares - intocáveis -, estudava e trabalhava de se reinventar em papéis tantos - e tortos - onde o sorriso que esmaga as minhas bochechas, salientando-as, era o único lugar-comum do travestido cotidiano. Nunca deixo de sorrir, pois, já aprendi isto profundamente, sou esperançada e me espanto com esta vida grande e impossível. 

Sempre que me despeço de você cai uma lágrima do meu sorriso; as minhas íris caem na ansiedade negra das pupilas. Olhos que se tornam intocáveis e distantes. Não são intocáveis os outros olhos. Eu que, de tão pura, me afasto dos olhares. 

Ontem, quando andávamos intranquilos pela noite dilatada, você me disse que na época medieval quem frequentava as ruas durante a alta noite eram somente os santos ou os loucos. E ontem éramos nós, loucos e santos, num mundo que pelo exagero globalizado se fez medieval. Andávamos solitários, pisando medrosamente nas pupilas do mistério noturno. Toda pureza santificada é uma espécie de loucura, não é? De repente o espelho vira o cinema que antes rodava no ar por detrás das minhas costas. Ponho os olhos a fitar o ângulo mais alto que alcanço com a dimensão calculadamente delineada por um Deus santo-insano de meu corpo e toco o impossível que sou eu.

Acordo cansada quando durmo com você. Confusa que fico se estou já desperta ou se ainda sonho. Cante para mim, por favor, Strawberry fields forever? Venero religiosamente, como uma louca, a tua voz aveludada. Estou na realidade, contudo, cante cante cante até que eu caia nas profundezas do umbigo inconsciente. Living is easy with eyes closed.

I'll send all my loving to you,

R.

Fidelidade entre as pernas

Desde o meu primeiro inverno,
a madrugada é o espírito mais fiel
de que tenho notícia.

Vestindo vermelho ou negro,
tem, inacreditavelmente,
o mesmíssimo semblante.

Um pescoço alongado,
olhar de quem assiste
a mesquinhez da existência
de um altar pecaminoso,
lábios levemente rachados,
hálito amadeirado
e as maçãs do rosto
que dão nas vistas.

A madrugada não engana
que entre as suas magras pernas
há um vale profundo.

Sem hesitar em lhe dar a resposta 
para quaisquer que sejam 
as suas dúvidas,
a madrugada não joga sujo
nem foge a cara à tapa.

A madrugada não abandona,
ela permanece.
Faz do tempo, oh danada,
uma estátua infantil
pregada na testa.

Ourives do silêncio,
a madrugada trabalha
e batalha,
com sua navalha,
na escultura
utópica da solidão,
alcançando
a sua forma
mais fina.


A madrugada,
está beijando,
devotamente,
a minha boca
com a língua.

8 de janeiro de 2015

Por falar em paixão


hoje
a minha
coxa esquerda
me lembrou
a textura
dos teus
cabelos


ontem
o céu refletiu
as tuas pupilas
dilatadas naquele dia
em que eu te pedi
para me contar
quantos planetas
brincam de tirar
o chapéu da ciência
do futuro


amanhã
é outro
hoje 
que tão logo
será 
um outro
ontem
cheio de estrelas


(Em 7 de Janeiro de 2015, n
a manhã amanhecida tardiamente.)

3 de janeiro de 2015

Sentimento do Universo

In memoriam a Carlos Drummond de Andrade



Tenho apenas uma boca,
e o sentimento do universo,
mas estou cheio de silêncio.
Minha saudade inventa epopeias
e o tempo vive num corpo antigo,
na pulsação de um amor urgente.


Quando estava prestes a ir embora, a língua
no céu da tua boca pronunciaste:
Nada. Morto o meu desejo, morto
o tempo que deixaste manco,
saqueei a saudade e parti.



Os jornais nunca estamparam
a notícia de que se pode sofrer 
de um silencioso amor
como se sofre de pânico numa guerra fria.
Sinto-me na fronteira do talvez.
Anterior a certezas,
depois de ultrapassar a agonia da ausência,
afundo os pés na areia molhada de mar e me perdoo.



Quando alucinei teu corpo
boiando sob as águas 
de ondas sabor lágrimas,
joguei flores brancas no teu sexo 
e fechei teus olhos.
Acordei amanhecido da noite longa,


esse longo anoitecer
mais sonho que o sonho. 




Quem (sol) eu:

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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