Diários Noturnos

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11 de maio de 2010

(Sem aviso, a porta principal se abrira.)

Não. Nunca! Tu cometeste a pior das tragédias quando se pôs a umedecer os olhos. Não é certo reagir dessa maneira. Tu não me convences com o mutismo afogado em amargura de lágrimas. Se cerro os olhos, a cena parece tão seca que sinto o sangue petrificar. E este deserto me dói do avesso: nem o pesar por ti sou capaz de carregar no fardo dos sentires. Por gentileza, fuja à ideia de que estou sendo cruel e para de me olhar assim. Se quisesse penetrar essa minh'alma diabólica, devia ter perdido um tempo considerável ponderando a sanidade antes de sumir de mim. Não suporto essa tua lida com a tristeza, Mulher. Aceita de bandeja esta verdade: tu não se importas com a tua própria angústia. Imagina! Desalinhaste a ampulheta da existência! Resolveste a perdição de pensão em pensão, tanto vinhos mesquinhos meteste nessa tua garganta, esqueceste teu corpo em outros corpos gratuitamente & agora choras. E agora choras toda a chuva que não soube desfrutar. Onde é que mora a tua culpa? Em qual esquina da tua veia bordaste a morada digna do teu eu? Se eu peço que te expliques, derramas lágrimas. Para confessar o amor indiscreto, derramas lágrimas. Comprarei a ti um dicionário. Não entendas como uma graça, um presente; será uma condolência. Então estudarás verbete por verbete para ver se nomeias os reis da tua humanidade. Pelo amor de um Deus, chega de amassar a tua cara, para de franzir os músculos da face. Mulher, o rímel tingiu de carbono a tua pele de neve. E agora imagino que é teu sangue negro brotando dos olhos como se o teu pranto não obedecesse à tua necessidade de demonstrar a tristeza, esgotando-se. E o que eu havia mencionado se confirma na minha alucinação: tu não se importas com a tua própria angústia. Ei! Por que não entras de vez ao invés de ficar aí parada? Venha, vamos fechar a porta. Não quero que vizinho algum seja espectador; afinal, isso aqui está longe de ser um espetáculo. Vês? Prezo por uma vida somente minha. Tu precisas entender que pertencer a si próprio resulta naquela liberdade em carne viva que tanto te digo. Mulher, mulher... que ventre te guardou. Aliás, penso que tu ainda não nasceste. Venha, apoias o teu braço no meu pescoço, soltas teu peso no meu corpo. Vou te banhar. Te lavar a superfície tentando amolecer a casca podre que enferrujou a tua alma.

4 de maio de 2010

Solilóquio com ruídos entreolhados

Ela o assalta co'as retinas.

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Ele boceja com demora.

(Durante o dia, qual dos pensamentos espirais mais se repete? Tu preferes manhãs nubladas, de sol, de frio & vento, de sol & pingos? Ou as não-manhãs? Andar no asfalto que sobra da fileira dos carros, na calçada da direita ou esquerda das ruas ou no equilíbrio dos paralelepípedos? Tu contas as janelas abertas ou o número das casas & edifícios? Confias no semáforo ou segues o fluxo dos pedestres? Costumas cambalear em frente às vitrines de sebos ou em frente aos balcões de botequim? Ou permanece desistente no ponto equidistante entre ambos, respirando cigarros ao conferir a indecisão? O que te faz eriçar os pêlos? Medo de amar ou pavor de ser surpreendido? Na cabeceira, poesia ou prosa? Água do chuveiro com Bitous ou Rolim Estones? No bolso do jeans carregas isqueiro ou fósforos? Desconfias dos sorrisos ou das lágrimas? Preferes a decisão a partir d'uma encruzilhada ou rumar instintivamente de impulso em impul...)

O sapato esquerdo d'Ele retarda o tempo num tango de agonia.

Ela engasga uma dor que vem do ventre:

--- Se o meu silêncio fosse sólido, cuidadosamente o encaixaria no vão das tuas mãos quando assim, unidas.

--- (...) - Ele desvencilha as amarras feitas c'os dedos & envolve grotescamente o copo de uísque co'a mão direita.

Ela foge. Embora ainda permanecesse sentada, ela estava fugindo.

3 de maio de 2010

P.R. & o amor por sua M.C.S.


Durante todo o percurso a pé, P.R. iludiu a sua ânsia pelos cigarros. Havia fumado todos os cinco maços para uso emergencial guardados no porta-luva do carro. P.R. acreditava fielmente que se não fossem os cigarros a morte não lhe teria escapado em tantos sufocos existenciais. Não era um daqueles superticiosos de bar, com rostos inchados & avermelhados, barriga de barril e com todas as epopéias vitais na ponta da língua; era verdade que tinha sim o rosto inchado & avermelhado e uma barriga de barril, contudo, por ser um homem de mente enciclopédica - podia se atrever a discorrer sobre qualquer que fosse o assunto com um poder de construção de pensamento impecável -, era também um homem sem epopéia vital na ponta da língua.

Mantinha o traseiro de quem lhe dava atenção por horas a fio quando recordava as datas e os datalhes dos marcos históricos ou quando recitava Cervantes. Fazia tudo isso movendo as mãos sem cigarros italianamente tamanho o entusiasmo que sentia por saber montar os pormenores da humanidade de cabo a rabo. Todavia, na presença física, na presença iminente ou mesmo na presença psicológica - feito alucinação ou apenas recordação & lembrança - de sua M.C.S., as mãos tremiam em desespero: como se chorassem a dimensão do cigarro para cobrir algum dos vãos entre os dedos, de modo que assim, com os cigarros, as mãos voltassem a atingir o equilíbrio necessário e o pensamento voltasse àquela razão impecável.

A coragem de P.R. surpreendeu a ele próprio. Já era muito o fato de ter decidido atravessar uma estrada que durava três horas e vinte e dois minutos se a 120km por cada sessenta minutos somente para ter qualquer coisa de sua M.C.S. Esse qualquer coisa de M.C.S. que o fez comer os cinco maços de cigarro durante os treze infinitos que couberam dentro do tempo da viagem de carro.

P.R. iludiu a sua ânsia pelos cigarros durante todo o percurso a pé até a casa de sua M.C.S. Sentia como se guerreando sem escudo com a Morte. Era um balançar desengonçado de mãos, um sem propósito de pernas, uma vertigem vinda da pressa sanguínea dentro de seu corpo que se sentiu Dom Quixote. Em voz alta, começou a recitar Cervantes. As suas mãos aos poucos foram ganhando a vivacidade da razão, movendo-se italianamente. Bradava expansivo, com uma forte entonação quando numa rima chegou Dulcinéia. Auto-sabotagem: P.R. era um Dom Quixote na mais solitária das solidões sem a presença dos seus cigarros Sancho-Panças.

Com a prudência enfraquecida, avançando a vida em desequilíbrios físico & psíquico e, inclusive, com a visão turva & a boca num deserto, P.R. esperava sua M.C.S. atender a campanhia. Mais trezes infinitos suportados impacientemente. Mas toda a duração dessa agonia universal desapareceram assim que o rosto de M.C.S. invadiu a paisagem da janela da frente. E numa altivez desconhecida, a garganta fez a frase:

--- M.C.S., minha Dulcinéia feita de amor, destrua todos os moinhos de vento para que cigarro nenhum se apague.


1 de maio de 2010

Homem Cinza

Arrancou o cabide de modo drástico. Notando não ser aquele o terno adequado para caber no dia cinza outonal, rapidamente o lançou ao ar (virou tapete de chão). Dedilhou no armário uma camisa xadrez, outra listrada em azul marinho, a calça de linho - presente de algum parente inoportuno em alguma comemoração natalina na casa de sua madrasta -, um blazer mostarda de veludo, outro preto modelo caban. "É este", balbuciou para si. Enfiou com violência o braço esquerdo e pendurada a manga direita sobre as costas, seguiu eufórico em direção à cozinha. Chaleira, torneira, água até à boca, fósforo, gás, pronto. Voltou ao quarto e estancou em pose interrogatória: "O que vim fazer aqui?". O olhar a esmo alcançou longe o maço de cigarros em cima das páginas abertas de Faulkner e tratou logo de apanhá-lo. Procurou o bolso do blazer, encontrou a pele do abdômen. Apoiou o maço no móvel ao lado, despiu a manga esquerda, lançou o modelo caban ao ar (outro tapete de chão). Abriu qualquer gaveta, pegou qualquer malha. Então cobriu a pele com uma malha branca de gola esgarçada, abaixou-se e, na sua desatenção, a mão segurou o terno não escolhido. Vestiu-se sem se ater em ajeitar a gola atrás do pescoço. Estancou novamente. Para pôr em ordem o rebuliço de ideias, levou um bastonete aos lábios, tirou do bolso do jeans a caixa de fósforo e o acendeu. Guardou o resto dos cigarros junto aos fósforos na algibeira do terno não escolhido. Procurou no ar dos pulmões algum esclarecimento para todo aquele emanharado de sentimentos que o assaltava o âmago, demorando-se na respiração. Sentiu-se cansado. Teve vontade de chorar. "Não tenho tempo para isso, o cinza do dia se metamorfoseará em escuridão na próxima dança do relógio". Num súbito espasmo, correu até o fim do corredor. Noutra rapidez de instantes, sentiu o estrondo da porta fechando atrás de si.

Eis um homem avançando calmamente as ruas, casando perfeitamente a sua alma no breu de um fim de tarde. Ao contornar uma das esquinas, estancou outra vez: "Merda! Esqueci a chaleira no fogão. Preciso voltar".

Amaldiçoou a escuridão do dia por não perceber que há tempos já era noite dentro do terno não escolhido. Como se fugindo do teto dos céus, avançou feito criança medrosa para dentro de casa. Embora não tenha simbolizado a velha angústia, o homem pôs-se a chorar assim que a porta novamente bateu violenta atrás de si. Caindo o corpo no piso da cozinha (virou tapete de chão), soluçou:
"Desisto ----- de ------
------------------ mim".

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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