Diários Noturnos

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17 de dezembro de 2013

A ESCRITA DE MIM

“Estou com a impressão de que ando me imitando um pouco.
O pior plágio é o que se faz de si mesmo.” Clarice Lispector

De um lado,
os pés na lama
da noite.

Do outro,
as dez unhas
agarradas
ao sol de teu sorriso.


Aqui,
o meu nariz afundado
na tua barba macia.


Ali,
as minhas pernas
cobertas com a areia
de um oceano infernal.

Entre uma coisa e outra:
o corpo elástico de mulher
e um fiel coração de pressão.

- Eu te amo pra sempre!
- Fique comigo, baby!
digo a ti quando a visão m'escapa.

De olhos
escandalosamente
abertos,
os pulmões gritam,
como se exibindo
as suas asas
:
- A vida é impossível
e nunca!

A noite não cabe no dia,
assim como o óbvio contrário disso,
o tempo está em tudo,
todavia,
e me preenche de vazio.

Nas ocasiões
em que o coração
é uma gelatina em mãos
de criança perversa,

E o corpo 
um tecido engolido 
pelo vento seco 
da metrópole
que vem da janela,

Sou in-óbvia,
confessional,
confusa no fuso
das horas,
e escrevo o corpo
de um 
diário noturno
co'as letras.


11 de novembro de 2013

Amor remanescente na ponta da letra

Inspiro um cigarro,
sujo de café a língua,
ultrapasso teus olhos e finalizo,
sentindo o gozo da filosofia
sempre inacabada,
que - sim, meu amor -
toda a minha inspiração vital
habita o arcabouço misterioso
das reminiscências.

Contemplando o limite da minha pele,
confesso ainda mais:
o amor é possível somente
se me permito

1) ser o mapa do tesouro
da tua inteligência

2) ser a fruta carnívora
da tua fome existencial

3, 4, 5, 6, 7...) ser
a matemática ilógica que se reverbera
nos significantes do nosso simbolismo.




São Paulo, 10 de Maio de 2011.

5 de novembro de 2013

Nota

Uma dádiva 
da enunciação:
começar a fazer 
as pazes 
com o passado,
esta criança 
que não morre
nem depois da morte.





30 de outubro de 2013

De Sóis Noturnos


para Bárbara Lia


Atrás do espelho,
tinha um espelho.
Sou eu?

Neste,
eu estava
invertida.

Naquele,
eu estava
a me ver
vertiginosamente.

Branca de neve
sem madrasta:
eu sol.

Toda estampada
de sóis noturnos.

Nem quem,
espelho meu,
nem mais bela.
Só eu.

TRÊS TEMPOS
I
Inspirou:
- Eu sou?
II
Expelindo:
- Eu sol!
III
Morrerá:
- Eu só.

10 de outubro de 2013

Emoção: moção para fora

diante da palavra destrinçar
eu me excito
nada da coisa do meio molhada

é uma palavra que segura 
e interpela as raízes
dos meus cabelos que nascem na nuca
nada da coisa do meio molhada


eu
tombo

cabeça

: meus olhos em mar de ondinhas salgadas
é mais que erotismo em véu, minha amada palavra
é um virar-se a si mesma de água santificada
aquela sobre paixão amaciada em lágrima

10.10.2013 - 21:16

25 de setembro de 2013

uma não qualquer quarta-feira

ontem à noite eu vi um fantasma. era branco, voava e apareceu atrás da janela, com o cenário de um prédio do centro da cidade atrás de sua queda: foi caindo, mas voando, numa linha diagonal da direita para a esquerda.
"a queda, em si mesma, contém a ressurreição" (Rappoport, 18--).
nada mais óbvio do que ter visto um fantasma ontem à noite, depois de um dia de setembro de 2013 que foi de 2008 a 1989, passando depois por 1982 - com os olhos fixos, pingando de emoção, na poesia duma mulher que resolveu cair no túnel sem volta aos 30. a poesia poetiza independentemente sobre paixão. e é este o tema da minha vida.
cheguei a pensar que setembro deste ano veio como uma apunhaladinha injusta no ápice do cérebro. mas aí que fui surpreendida. alguma coisa tinha que acontecer. este mês me serviu como recaptura do tempo e do quanto ele custa. de susto em susto, vi um fantasma branco voando atrás da minha janela. um jeito de sentir esperança. dormi, depois disto, tão fundo que nem acordei para ir ao banheiro durante a noite, coisa que faço religiosamente pelo menos duas vezes durante o sono do descanso noturno depois da vida comprida do dia. e então acordei, antes de qualquer apito do despertador, e fiz café, estou lavando roupa, separei o médico e o monstro para ler à noite, ouvi belchior, comi banana com cereais e vou me preparar, com banho e tudo, para ler em espanhol sobre a divisão do sujeito, texto traduzido do francês, de um psicanalista reverencioso que discorre com humor poético e densidade teórica sobre a contribuição da psicanálise para se pensar os laços sociais contemporâneos.
enquanto faço este diário, Lóri, minha gata, dorme na cadeira que se porta no meio da sala de estar. a cabeça pousando delicadamente sobre as patas-mãozinhas. os olhinhos parecendo vírgulas de um livro da clarice, o nariz rosinha-bebê e o rabinho peludo e cinza caído cadeira a fora como se fosse um tecido da roupa da rainha de roma. um jeito de sentir esperança.

2 de agosto de 2013

A esperança é a última que se suicida pois "nascer é muito comprido"


"Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio

Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido."
Reflexão nº 1, Murilo Mendes



Cenouras são saborosas. Cortadas obsessivamente em rodelas finas com o tom do azeite e três pitadas de sal tornam-se voluptuosas. Sobretudo com o chileno de uvas brancas Cosheca Tarapaca, ou qualquer coisinha que o substitua minimamente - um grande amor é capaz de serventia nesta composição -, torna-se sublime. Para ser excepcionalmente sublime, beber o caldinho alaranjado, altíssimo de sal, com a gordura sábia do azeite e com, ainda, o acréscimo urgente de um gole profundo do vinho que te falo é um caminho de satisfação que presentifico neste momento.
Preparação esta milimetricamente pensada com antecedência, num alvoroço de fazer mercado às 18h, para escrever. 
Caso o relógio não tivesse engolido ponteiro abaixo o além da meia-noite, eu estaria dentro do meu plano. Mas a poesia tem uma voz expulsa do dia, da noite e dos planos. Fica sempre entre os grandiosos eventos lógicos da natureza. Entre o bem, o mal e o ordinário. Fica entre a vida. E eu tenho um costume esperançoso e antigo de desejar caber na noite de modo que o acordar aconteça antes do apito da fábrica de tecidos ferir meus sonhos Rosas.
Com isto, com esse hábito cruelmente cidadão, acabo protelando a poesia. Mais ou menos protelar. Melhor dizer: vou distribuindo a poesia com zero uniformidade ao longo dos afazeres cotidianos e quase não sobra nada. Digo, quase não sobra nada em mim, pelo menos nada que suficientemente me alimente. Fico sem garantia poética com essas poesiazinhas cadaverizadas sem conjuntura que suporte. Se nem o pão e o vinho compartilhados acabaram com as mazelas do mundo, imagine só se distribuir poesia em sustos metafóricos entra em economia self-solidária. Fico faminta e derrubo o estojo de maquiagem no chão, ainda bem que não foi a taça de Tarapaca, só de estar assim - frente a frente - do branco vândalo - porque não é pacífico - do Office Word. 

***
Um exemplo de distribuição poética avulsa:  hoje no metrô, atrasadíssima para ir à análise e já tendo antes desmarcado um compromisso por justamente não ter conseguido caber na noite de modo que eu pudesse ter acordado antes do apito, eu tive um verso-pensamento. Foi assim: 
--- "a esperança é a última que se suicida". 

***
Afoita por uma rápida auto-descrição, porque duramente me pediram, me defini: inquieta, barroca e esperançada. Deixei "esperançada" por último para que enfatizassem nisto.

Não há nada mais parecido do que ser poesia do que ter esperança. Metaforizar o susto de ir sentindo toda uma gama de vida a cada vez é um ato esperançoso. Esperança engrandece o sólido, não com pouca importância, do ato existencial. 
Por exemplo, um ato existencial que cometi foi te olhar dormindo. Sem poesia, o ato existencial já está aí: te olhar dormindo. Mas, meu bem, você não estava só dormindo. Tua cabeça definia minha respiração apoiada sobre meu seio, e isto era a prova de que eu ali, ao te olhar dormir, cuidava a tranquilidade do teu esquecimento breve da vida pormenorizada rigorosamente por capricho da contemporaneidade. Essa coisa do dinheiro canibal nos comprimir. E nisto, sonhava o sonho que te entupia o cérebro. Inventava também, na captura da cena pelo olhos, que o amor era aquilo: te olhar dormir sobre os meus peitos. Todavia, não tem soneto vital que suporte se sustentar nesta última invenção poética citada. Amor é mais e eu tive que ir embora.

Falando nisto, ofereço mais um exemplo. Outro dia, pensando em como a vida se atropela, me exigi ter tempo para desenvolver um texto de título (a poesia é perversa e pode vir em forma de título de um texto):
 
--- "te escrever para te caber em parágrafos que durem um pouco mais que a memória". 
Eu te repeti várias vezes que os investimentos libidinais pulam de galho em galho. Quando pulei no teu galho, tamanha intensidade leonina e peso de amar, quebrou-se o galho logo. Contudo, erroneamente convencida de que sou macaca velha, fiquei insistindo estar na altura máxima das árvores. Quis te escrever para te caber em parágrafos que durem mais que a memória para não esquecer quem foi você para mim: macaquinho de uma pata só, tamanho folclore no discurso. Macaquinho-saci. Você quase é só uma dor -  digo -  cor, de tanto que desaparece conforme a agenda de 2013 vai preenchendo suas páginas - uma a uma. 

Era cruel, para mim, e avassalador, te carregar tanto ao longo dos dias, como uma mamãe-canguru. Mas tão cruel é te perder pelos dias como se nunca tivesses feito parte deles ou mesmo, o que é ainda mais cruel, como se nunca tivesses feito a rima da minha esperança poética.
A verdade é que você foi o criminoso, o destruidor dos setes mares da minha poesia autêntica. Eu, rigorosamente pintando ser a macaca ateia e velha, e você me convertendo religiosamente em canguru-mãe. Não tem identidade poética que aguente este travestismo animal. Até pelo motivo em negrito de que, tantas vezes camaleoa, eu era uma bebê felina esgoelando por amor. Macaquinho-saci e pilantra, você bem merecia não caber em parágrafos antes do pouco tempo da memória terminar se não fosse a saudade que carrego da sua beleza. Eu tenho saudade de te olhar dormindo, mesmo depois de ter ido embora por me sentir acobertada no sentimento de que amor é mais. Mas: saudade de te olhar dormindo. Os nós dos teus fios de cabelos encaracolados. A costeleta comprida que antecipava o menino triste que era. Os cílios feito lãs em cachecóis infinitos. Um imponente nariz louco que me respirava inteira; disse você pela última vez - arrependido -:
--- "você era o perfume no ar".
A boca arquitetônica. O pescoço magro e comprido para combinar com os ossos todos em evidência. O mamilo ensolarado em pelos ralos. Umbigo misterioso e fundo como um poço oco.  ..........................................................  Pernas tortas, canela fina, pés lindos. Fim. ***
Mais uma poesia, que mosaica em prosa e em forma de lembrança cadaverizada, não alimenta a fome maior de ser amor. Esperançada já sou. Nasço sempre. 

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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