Diários Noturnos

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31 de março de 2015

Loá, para a posteridade

Loá saiu do show das irmãs gêmeas, Taxi, Taxi!, com o sentimento de que as duas garotas carregavam um quarto escuro nos olhos. Ela não chegou a encará-las face a face. Não foi preciso. Tudo o que reparou nelas condenava que, sim, as moças eram trancadas numa escuridão própria.
Entrou pausadamente na sala de sua casa. Encostou a porta da entrada atrás de si como se estivesse tocando um piano, retirou com cautela a chave do buraco da fechadura e a pousou, logo em seguida, sobre a escrivaninha que ficava à direita para quem entra no apartamento. Os estalos desses mínimos movimentos eram barulhos silenciosos e disrítmicos, revelavam a inquieta paciência de seus gestos, quase robótica. Agia, em sua solidão, com a qualidade de quem estivesse sendo filmada para a posteridade. Como se não pudesse mais suportar a delicadeza solitária de fluir o instante após adentrar o recinto que ela mesma cuidava - por ter unicamente essa opção, não havia mais ninguém morando ali -, sentou-se na cadeirinha que ficava na varanda, ao lado do vaso de manjericão meio sem vida. O sol não alcançava os ângulos mais baixos de cada canto da varanda. Depois de um espaço de tempo, a planta morreu.
Às vezes Loá confundia o vento que escutava mais alto durante a noite com um assovio de gás vazando. Então, levava todo o seu corpo para a cozinha para verificar as bocas do fogão. Chegando lá se lembrava de que não havia posto nada para ferver ou cozinhar. Ela tinha pavor de morrer por descuido. A ideia de se aniquilar era uma máxima na gaveta mais difícil de abrir em seu cérebro. Sabia que ganhava a vida disfarçando de modo torto esse pensamento que vinha na frequência de toquinhos de martelo.
Loá achava que tinha a missão de desdizer as coerências inventadas pelo mundo ou por ela própria, acreditando que seus dentes enfileirados eram uma espécie de fuzil contra as verdades sustentadas como absolutas, e, por isso, falava, falava, abria a boca para emitir, quando podia, a sua opinião sobre as coisas. Todavia, embora procurasse um espaço para contar acerca de suas análises de cineasta sobre as composições de existência das quais tinha acesso, nem sempre conseguia se expressar. Loá andava nutrindo algum ódio pelas palavras. Fazia tempo que não consultava dicionários e até fantasiava que havia uma minhoca esmagada entre as páginas de seu dicionário preferido na poeira da estante do rack.
Além de falar, Loá escrevia. Em uma noite insone, olhou-se no espelho e desenhou com a força da imaginação a forma de seu corpo com verbetes enfileirados, como se ela mesma fosse inteira um dicionário. Pensou que falar ou escrever era um jeito de se despir. Gostava da crueza da nudez, pois, a nudez podia ser sempre duas coisas: inocência desprotegida e perigo iminente. Uma vez acariciou a sua coxa esquerda e se lembrou que dentro dela havia o fêmur. Teve a sensação rígida de ser ossos articulados por tendões. Ela não sabia dizer há quanto tempo estava correndo atrás de alguma coisa que lhe escapava toda santa e diabólica vez. Doíam-lhe as pernas e principalmente os tornozelos, Loá ia se dilacerando em sensibilidade pelos caminhos percorridos. Ela tinha a intuitiva sabedoria de que não se permitia fincar. Embora isto lhe fosse de fácil compreensão, não dava a mínima para entender a causa de não se permitir parar de correr. "Tanto faz saber o motivo disso", pensou, "a companhia da noite é uma de minhas poucas certezas que sei que durará por toda a vida".
Inspirou um cigarro de modo fundo, cavando toda a terra dos pulmões. Ao devolver o ar à atmosfera, disse em voz alta: "Tenaz". Quis escrever essa palavra. Procurando em suas miudezas e memórias o que substancialmente tal adjetivo significava a ela, completou, esbaforida: "tenacidade é um troço leitoso que me entope o estômago". Alcançou seu diário e, no momento de escrever, quase o fez com o cigarro. Refletiu que tal ato falho tinha uma raiz lógica: "a caneta também é cilíndrica". 
Na madrugada, tinha o hábito de contar as janelas acesas dos prédios. Por que diabos ela não se contentava com a noite, uma de suas poucas certezas? A noite nunca a deixaria, depois do dia, lá estaria ela. Para ela.
"Se eu chego em casa e não tiro os sapatos é pelo motivo de não me sentir em território próprio?", se questionou. O lugar dela não era aquele, por isso corria. Qual era e onde ficava esse lugar? A pergunta lhe veio enquanto degustava o grand finale do uísque. O black Johnnie. A cada vez que levava o trago do uísque até à boca, pingava uma gota gelada em sua saia. Usava aquela saia para seduzir, era viciada em atrair para si a atenção que suspeitava ter faltado a ela desde a infância. Nunca planejava o que fazer para lidar com os objetos conquistados e acabava por se sentir criando filhos órfãos; deixava-os todos, no fim. Em pleno sangue, fervido na colher de aço da vida, Loá carregava a impressão de que ela era um pouco desumana. Não tinha receio de enlouquecer, mas sentia sua liberdade como um purgatório - o lugar onde se sofre. Colecionava desconhecidos que tinham por ela amor e depois era tomada por um vazio de queimar saliva. Tinha regularmente a sensação ansiosa de boca seca e, para aplacar o deserto de si mesma, bebia. À noite. Sozinha.
Da varanda cheia de madrugada, ouviu um grito feminino vindo da rua de trás. A voz a estuprou. Se até, ou inclusive, o belo a violava, o que diria de um grito no silêncio dos tantos que dormem. E ela ali, acordada, comendo cigarros. 
Fazia tempo que não ia ao mercado e andava esquecendo há pelo menos três semanas das quintas de feira. A geladeira refletia a sua cara de sete buracos descobertos e escancarados para o nada e para a fome de se experimentar completamente fincada como uma árvore. De repente, Loá se sentiu enjoada de si mesma. Cambaleou até o quarto escuro e dormiu de rímel, lápis azul nas pálpebras e roupa de rotina no corpo. Apenas tivera forças para tirar os sapatos.



NOTA DA AUTORA


Não se soube em que pé de humor Loá acordou nem mesmo tem-se notícia de por onde anda correndo e com que pernas. Esse conto é a captura cinematográfica de uma noite da menina de 21 anos que não dava a mínima e se dava toda. 
Embora a autora seja o olhar que a filmou, foi Loá quem escreveu de próprio punho, em seu diário, o pedaço de uma de suas noites para a posteridade. Essas páginas foram encontradas no meio de um caderno de pautas musicais.




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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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