Diários Noturnos

Diários Noturnos

2 de agosto de 2013

A esperança é a última que se suicida pois "nascer é muito comprido"


"Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio

Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido."
Reflexão nº 1, Murilo Mendes



Cenouras são saborosas. Cortadas obsessivamente em rodelas finas com o tom do azeite e três pitadas de sal tornam-se voluptuosas. Sobretudo com o chileno de uvas brancas Cosheca Tarapaca, ou qualquer coisinha que o substitua minimamente - um grande amor é capaz de serventia nesta composição -, torna-se sublime. Para ser excepcionalmente sublime, beber o caldinho alaranjado, altíssimo de sal, com a gordura sábia do azeite e com, ainda, o acréscimo urgente de um gole profundo do vinho que te falo é um caminho de satisfação que presentifico neste momento.
Preparação esta milimetricamente pensada com antecedência, num alvoroço de fazer mercado às 18h, para escrever. 
Caso o relógio não tivesse engolido ponteiro abaixo o além da meia-noite, eu estaria dentro do meu plano. Mas a poesia tem uma voz expulsa do dia, da noite e dos planos. Fica sempre entre os grandiosos eventos lógicos da natureza. Entre o bem, o mal e o ordinário. Fica entre a vida. E eu tenho um costume esperançoso e antigo de desejar caber na noite de modo que o acordar aconteça antes do apito da fábrica de tecidos ferir meus sonhos Rosas.
Com isto, com esse hábito cruelmente cidadão, acabo protelando a poesia. Mais ou menos protelar. Melhor dizer: vou distribuindo a poesia com zero uniformidade ao longo dos afazeres cotidianos e quase não sobra nada. Digo, quase não sobra nada em mim, pelo menos nada que suficientemente me alimente. Fico sem garantia poética com essas poesiazinhas cadaverizadas sem conjuntura que suporte. Se nem o pão e o vinho compartilhados acabaram com as mazelas do mundo, imagine só se distribuir poesia em sustos metafóricos entra em economia self-solidária. Fico faminta e derrubo o estojo de maquiagem no chão, ainda bem que não foi a taça de Tarapaca, só de estar assim - frente a frente - do branco vândalo - porque não é pacífico - do Office Word. 

***
Um exemplo de distribuição poética avulsa:  hoje no metrô, atrasadíssima para ir à análise e já tendo antes desmarcado um compromisso por justamente não ter conseguido caber na noite de modo que eu pudesse ter acordado antes do apito, eu tive um verso-pensamento. Foi assim: 
--- "a esperança é a última que se suicida". 

***
Afoita por uma rápida auto-descrição, porque duramente me pediram, me defini: inquieta, barroca e esperançada. Deixei "esperançada" por último para que enfatizassem nisto.

Não há nada mais parecido do que ser poesia do que ter esperança. Metaforizar o susto de ir sentindo toda uma gama de vida a cada vez é um ato esperançoso. Esperança engrandece o sólido, não com pouca importância, do ato existencial. 
Por exemplo, um ato existencial que cometi foi te olhar dormindo. Sem poesia, o ato existencial já está aí: te olhar dormindo. Mas, meu bem, você não estava só dormindo. Tua cabeça definia minha respiração apoiada sobre meu seio, e isto era a prova de que eu ali, ao te olhar dormir, cuidava a tranquilidade do teu esquecimento breve da vida pormenorizada rigorosamente por capricho da contemporaneidade. Essa coisa do dinheiro canibal nos comprimir. E nisto, sonhava o sonho que te entupia o cérebro. Inventava também, na captura da cena pelo olhos, que o amor era aquilo: te olhar dormir sobre os meus peitos. Todavia, não tem soneto vital que suporte se sustentar nesta última invenção poética citada. Amor é mais e eu tive que ir embora.

Falando nisto, ofereço mais um exemplo. Outro dia, pensando em como a vida se atropela, me exigi ter tempo para desenvolver um texto de título (a poesia é perversa e pode vir em forma de título de um texto):
 
--- "te escrever para te caber em parágrafos que durem um pouco mais que a memória". 
Eu te repeti várias vezes que os investimentos libidinais pulam de galho em galho. Quando pulei no teu galho, tamanha intensidade leonina e peso de amar, quebrou-se o galho logo. Contudo, erroneamente convencida de que sou macaca velha, fiquei insistindo estar na altura máxima das árvores. Quis te escrever para te caber em parágrafos que durem mais que a memória para não esquecer quem foi você para mim: macaquinho de uma pata só, tamanho folclore no discurso. Macaquinho-saci. Você quase é só uma dor -  digo -  cor, de tanto que desaparece conforme a agenda de 2013 vai preenchendo suas páginas - uma a uma. 

Era cruel, para mim, e avassalador, te carregar tanto ao longo dos dias, como uma mamãe-canguru. Mas tão cruel é te perder pelos dias como se nunca tivesses feito parte deles ou mesmo, o que é ainda mais cruel, como se nunca tivesses feito a rima da minha esperança poética.
A verdade é que você foi o criminoso, o destruidor dos setes mares da minha poesia autêntica. Eu, rigorosamente pintando ser a macaca ateia e velha, e você me convertendo religiosamente em canguru-mãe. Não tem identidade poética que aguente este travestismo animal. Até pelo motivo em negrito de que, tantas vezes camaleoa, eu era uma bebê felina esgoelando por amor. Macaquinho-saci e pilantra, você bem merecia não caber em parágrafos antes do pouco tempo da memória terminar se não fosse a saudade que carrego da sua beleza. Eu tenho saudade de te olhar dormindo, mesmo depois de ter ido embora por me sentir acobertada no sentimento de que amor é mais. Mas: saudade de te olhar dormindo. Os nós dos teus fios de cabelos encaracolados. A costeleta comprida que antecipava o menino triste que era. Os cílios feito lãs em cachecóis infinitos. Um imponente nariz louco que me respirava inteira; disse você pela última vez - arrependido -:
--- "você era o perfume no ar".
A boca arquitetônica. O pescoço magro e comprido para combinar com os ossos todos em evidência. O mamilo ensolarado em pelos ralos. Umbigo misterioso e fundo como um poço oco.  ..........................................................  Pernas tortas, canela fina, pés lindos. Fim. ***
Mais uma poesia, que mosaica em prosa e em forma de lembrança cadaverizada, não alimenta a fome maior de ser amor. Esperançada já sou. Nasço sempre. 

2 comentários:

  1. Ahh, como é bom poder falar do amor.. Mesmo que já finado, ou só esperançado/lembrado.
    No começo não imaginei que fosse terminar aí (nele), não sei se vc já sabia. Mas foi toda uma escrita contraditória sobre a propria protelação da poesia pra, enfim, chegar no amor. (contraditória só pq a gente gosta de escrever sobre o fato de não escrever, só por isso.. Pq o texto todo tá uma delícia).
    E eu gosto dessas palavras assim, associação love (Hahhahaha #loveswipe! Escrevi associação livre!).
    Ta, acho que não preciso dizer mais nada,
    Associação love

    Love
    Bjo

    ResponderExcluir

Quem (sol) eu:

Minha foto
'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

Seguidores