Diários Noturnos

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20 de dezembro de 2011

De A a Z

A: - Obrigada. E desculpe-me. Novamente muito obrigada. (É a terceira vez que derrubo esta bolsa desde que saí do escritório. Deve ser esta tensão robótica nos ombros. Talvez a solução deva ser comprar outra bolsa, que tenha alças compridas para que eu possa transpassá-la sobre o corpo, equilibrando o peso no tronco; ou mesmo selecionar meticulosamente esses cadernos, parar de carregar livros de bolso que não são de bolso, comprar uma agenda menor, providenciar pastas com inúmeros compartimentos para distribuir as papeladas que ficariam divididas entre o escritório e o meu quarto; ou, ainda, a solução mais rápida deva ser pedir demissão com dispensa de aviso prévio... Mas, nossa!, que rapaz gentil. Me poupou o trabalho dos joelhos e dos ombr...)
Z: - Imagine, Senhora. Não há por que se desculpar ou agradecer. (...Meu Deus, que olhos! Será a deusa dos olhos? Tomara que o semáforo se demore. Tomara que ela não repare no semáforo. Tomara que ela não repare na minha fixação. Acho que vou olhar para frente, fingindo-me preocupado com a demora do sinal esverdeado. Ai! Algo acaba de quase perfurar a minha pupila esquerda, ai...) – Ai.
A: - O que foi? (Ele me chamou de senhora? Estou a uma distância imensurável de ser assim classificada. Preciso avisá-lo que o que se aplica, no meu caso, é senhorita. Será que é o peso da bolsa? Será que, por conta do peso excessivo da bolsa, ele deduziu que eu tenha livros dentro dela, experiência, sabedoria e cuecas para lavar? Oh não. Deve ser o anel. Este anel de pérola que só coube no dedo anelar da mão esquerda, a que é menos inchada – porque, afinal, sou destra e faço quase tudo com a mão direita, inclusive desentupir pias, fumar e me masturbar. Ele parece querer chorar. Como sou egoísta. Resolvo derrubar a bolsa justamente no momento em que um rapaz que chora andando pelas ruas passou por perto de mim. Não, ele não está chorando. Sou eu quem estava pensando em chorar antes da bolsa cair...)
Z: - Não deve ser nada. Meu olho só está coçando. Esse vento poluído petrificou o movimento da minha visão, me fazendo ver tudo anuviado. Ou deve ser um cílio inoportuno. Por favor, não se preocupe. É só uma irritação. Como você se chama? (Ai que infelicidade a minha, que acaso tolo. Situação mais desastrosa num primeiro encontro não há. Eu pensei em primeiro encontro? Será que ter me colocado a contemplá-la de modo tão cravado fez com que meus olhos se mantivessem abertos por mais tempo, deixando-os vulneráveis aos suspiros violentos do vento?)
A: - Venha cá. Deixe-me ver. Um colírio logo resolveria. Meu nome é... Oh! O semáforo finalmente abriu. Vamos, apresse o passo. Vamos correr logo para a farmácia, fica a duas quadras do outro lado da rua. (Acabo de dar as mãos a um estranho? E eu ainda nem desfiz a sua impressão que tanto me compromete, digo, que me define comprometida. E esse meu ato impulsivo, de pegá-lo na mão para levá-lo até a farmácia deve ter escandalizado meu lado materno exageradamente aflorado. Ora, ele mal sabe que por medo de ser mãe abortei duas vezes. Aliás, ele não sabe porra alguma sobre mim e, neste momento, aposto que quem nos vê pelas calçadas imagina um casal romântico e destrambelhado como nos filmes de Truffaut. E, nossa, ele bem tem uma fisionomia de Antoine Doinel.)
Z: - Senhora, senhora... Um dos cadarços do meu sapato desamarrou. Paremos por um breve momento, por gentileza. (Por gentileza? Como as palavras me escapam pela língua seca sem que o cérebro matute algo mais elaborado ou mesmo algo que caiba de modo devido nesta circunstância. Será que pareço descaradamente sem jeito? Um homem com um dos olhos vermelho, apoiando os glúteos no tornozelo a fim de amarrar o cadarço do sapato direito ao meio de uma calçada transbordando transeuntes numa velocidade absurda. Um homem com um dos olhos vermelho sendo guiado pela deusa dos olhos que agora, com essa minha visão esbranquiçada, ganha ainda mais um quê mitológico, um ar divino.)
A: - Oh, claro, claro. Não sei de onde inventei essa pressa. Acho que me embaracei toda na minha preocupação com teu olho, deve ser por isso. Um rapaz gentil também merece cortesia. E, além do mais, você com toda certeza sabe o caminho para a farmácia ou o que fazer com os teus olhos. Novamente, desculpe-me. E obrigada por socorrer a minha desatenção. (Estou tão de repente afobada que me esqueci de dizer como me chamo para o rapaz. Assim, visualizando-o de cima, vendo-o todo cuidadoso com seu sapato, posicionado tão próximo a minha perna esquerda, chego a sentir uma intimidade instantânea. Chego a pensar que o conheço tanto a ponto de ele ser capaz até de desvendar os títulos dos tantos livros que carrego nesta bolsa. Oh Senhor, quanta doação feminina por um olho masculino. Oh Senhor, preciso com urgência lhe dizer o meu nome e que lhe contar que não, senhora eu não sou.)
Z: - Pronto. E, que coisa surpreendente... acho que o que me doeu os olhos foi-se embora. Bastaram várias piscadas seguidas e o sol da visão voltou com os seus contornos e delineações. E agora, com a visão recuperada, reparo que os teus olhos estão absortos. Senhora? ...Senhora? (Estou começando a achar que foram os olhos dela nos meus que me fizeram avermelhar o branco dos olhos e da face. Nesta hipnose, os sapatos quiseram me tropeçar, quiseram a minha queda de boca literal.)
A: - Não! Por gentileza, senhora não. Absortos... Ah, sim, meus olhos se perderam no tempo dos semáforos. Agora que já não temos a pressa, também não temos o que fazer além do que estamos fazendo agora: posicionados um em frente ao outro. (Sinto que minha bolsa cairá ombro a fora pela quarta vez...)

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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