Diários Noturnos

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7 de junho de 2017

Prefácio: Por que arte não é um verbo?

Prefácio do livro "Soubecoisas Sobrecoisas", do poeta Sá Júnior da Cruz Lopes


          



          Do dicionário etimológico, arte tem sua raiz no termo ars do latim e tem ligação congênita com o grego tékne. Como produzir e receber arte, que não é um verbo?
No capítulo inicial do Evangelho de João, dentro da grande obra, decoramos “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1-4). No escape da dúvida, a criação do mundo permite que o homem ganhe matéria para criar seu próprio mundo. É como interligar o rabo aos dentes, a raiz às folhas, o ânus à boca, o cordão umbilical ao espermatozóide que fecunda o óvulo, a chuva ao vapor condensado de água, o Deus criador ao eterno retorno de Nietzsche, o tempo ao nada que o relógio não marca.
A criação do mundo permite filosofar o Impossível Deus e dar à Arte seu status sagrado de criadora de mundos possíveis. O leitor tem em suas mãos, diante de seus olhos, na escuta da sonoridade das letras que pronunciam palavras, sob o aroma do café do poeta, no gosto do silêncio criativo, o leitor tem a materialidade das emoções atravessada pelos cinco sentidos e somada àquele sentido que a arte criadora de mundo sentencia sem cair na prisão de um juízo final.
A poesia de Sá Júnior da Cruz Lopes em “soubecoisas sobrecoisas” está dividida, como sugere o título, em dois principais eixos: “soubecoisas” e “sobrecoisas”. Para cada um deles, dois blocos: “soubeamores” seguido de “soubecoisas” no primeiro eixo; “sobremundo” e “sobretudo” fecham o circuito no segundo. O poeta apresenta mil & uma formas (e “fôrmas” dentro de receitas) de lidar com as coisas do amor.
Em “soubecoisas”, Sá inicia sua escrita poética desenhando o futuro no passado, brincando de pintar o vazio com a cor branca de seu “giz de será”. Neste primeiro bloco, o amor torto dos versos não implora explicação nem quer o azedo sabor do sossego. A poesia de Sá anda sem guarda-chuva em “janela” para manter a temperatura de um amor, abre asas de borboleta dentro de uma carta de dupla entrega (da própria carta e dele mesmo) de nome “signo”, traveste-se de palhaço bissexual e rima feliz com nariz nos versos de “laços”. O corpo poético de “desafio” é uma brincadeira de criança grande e selvagem por amor que, por sua vez, nos remete ao verso “ter medo de amar não faz ninguém feliz”, de Vinicius de Moraes.
Na receita de “fôrma”, Sá come amor, já em “galhos” junta os retalhos do par: aspira ser uno. Todo o alvoroço de amar e querer ser amado de volta começa onde um ciclo termina: “feliz ano novo!” comemora uma “vida junta”.
Se em “soubeamores”, temos um eu-lírico que ama até o nível de virar palhaço, em “soubecoisas” as poesias se desenrolam sob um ar mitológico num esforço de sistematizar o conhecimento sobre as coisas que amar tem e não se sabe, e que, sem pé nem cabeça, morre-se sem saber.
Em “um mundo”, o poeta é semi-deus. Entre jardinagem arquitetada e gramado de terreno baldio, Sá brota flores das suas dores nos versos de “inhas”. Tão perdido de amor, não sabe se casa com suas asas ou “volta” para casa. Iludido do futuro que pintou com “giz de será”, “coisas” podia ter como trilha sonora a “Vaca Profana” de Caetano Veloso na voz de Gal Costa: “respeito muito minhas lágrimas/ mas ainda mais minha risada/ (...) sou tímido e espalhafatoso/ (...) no mundo um grande amor perdi”.
Que pés mantêm em pé o poeta? Em “pé” temos infantis catacreses da cabeça ao pé da página. Andarilho sem destino, um vagabundo “vagamundo” questiona a sina de seu fazer poético: “um poema vagabundo/ para um poeta? Ou um poeta vagabundo/ para um poema?”
Nos versos de “cabô”, “dias”, “soubevoar”, o poeta reinventa o amor que perdeu para criar versos improvisados e mergulhados em saudade. Nenhum conselho lhe serve para desviar-se do perigo que é amar, “a vontade de sobrevoar” é imperativa. Em “sobre a saudade”, “um beijo, um abraço, um abrigo, um amor, um prato, um amigo” colocam-no numa comoção nostálgica de domingo. Se o futuro que desenhou não chegou, o eu-lírico quer logo pular para seu último dia, sem o peso de arrependimento de amanhãs: “esse é o último dia/ não da semana/ não do mês/ e nem do ano/ esse é o último dia mesmo! qual teu plano?”.
O bloco “sobremundo”, do eixo final do livro, exige que o leitor seja forte. Aqui as coisas são sentidas em sua crueza, ainda que a poesia diga a verdade com a ponta da agulha mais fina.  Saem as coisas do amor, entram as coisas do desamor: tem “Maria estuprada, violada e cuspida”, a militância que levanta a bandeira das negras e das moças de short curto que não são putas e a exclusão social dos indígenas marginalizados.
Da poesia escorre o veneno das fast-food e a impopularidade da depressão nas postagens do facebook. “Sobremundo” poetiza o mal-estar que há tempos perdeu o controle remoto da civilização. Sá Júnior denuncia, em curta, grossa e delicada poesia, que o absurdo das manchetes não explica as capas das revistas e que a luta ultrapassa toda fé por amor à humanidade. Amem e digam amém.
Mas, porém, todavia, entretanto, “sobretudo” não é advérbio ao fim do livro. O título “sobretudo”, como o próprio autor segreda com palavras alinhadas em espaçamento à esquerda, faz referência à roupa que se veste por cima de todas as outras que ficam por debaixo.
No último bloco do segundo eixo cabe tudo: “o modo de preparo” é do leitor, a poesia enfia as “línguas soltas em toda e qualquer boca”, todo aquele amor outrora inventado vira matemática de estatística num (porno)gráfico.
O poeta está vencido pela falta de sentido que é o amor. Deixou de saber-amores, saber-coisas, saber-mundos, anda de sobretudo no submundo. Grita seu desejo masoquista, prostituído e violentado pela verdade de que o amor é tudo que o ser humano busca até o último dia de sua vida. De sobretudo o poeta protege seus cinco sentidos e já não liga de também ele próprio não fazer sentido: assume a culpa de ser cria e criador de seu próprio mundo.
Por que arte, a maior criadora de mundos, não é um verbo? Na minha boca, arte é palavra grande. Arte é o Deus de todos os impossíveis.
Agora me dêem licença. Recebam a arte poética produzida por Sá Júnior da Cruz Lopes.


Rebecca Loise
16 de Maio de 2017

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