Para R.
Pouco sei sobre este homem. Conheci-o
ainda menino quando eu, do mesmo modo trágico, também era menina.
O sol era um escândalo num céu azul cor
de olho humano em pleno ano 2000, onde tudo era promessa de futuro ou apocalipse.
O sol era um escândalo e supervisionava a cena estapafúrdia de crianças esquecidas,
sem a tutela de crescidos quaisquer, muito menos daqueles que os puseram no
mundo, numa piscina de clube em formato estratosfericamente largo, comprido e
descomunal.
Era uma sexta-feira apaixonada de verão
em férias.
Os amigos de Vinícius nadaram em
direção ao miolinho das meninas; eu era uma delas. Os meninos se aproximaram,
ele vinha lentamente logo atrás, espumando em covardia sobre as águas sabor
cloro e urina. De súbito, um dos amigos dele bradou a notícia:
– Vinícius
quer falar com Beatriz.
Como um balé
olímpico acidental, enquanto os meninos nadaram para trás de Vinícius, num
movimento gelatinoso que evidenciava a dúvida ética – queriam deixá-lo à vontade com
Beatriz, mas numa distância que favorecesse a captura de toda a circunstância,
pois estavam, é claro, com os hormônios acesos pelo furor documental da idade –, enquanto os meninos nadaram para trás
de Vinícius, as meninas dançaram mergulhadas apenas passinhos tímidos para trás
da escolhida (o queixo de uma delas quase se apoiou no ombro dela) por não
estarem enganadas de que precisariam proteger Beatriz do que ali, naquela
piscina oceânica, aconteceria.
Vinícius era
você e eu, a Beatriz. Ao redor de nosso protagonismo, em um círculo torto, as
crianças estavam atentas à cena estapafúrdia. O sol escandaloso queimava em nós,
em cada sopro de fogo fatal, a puerícia. Todos queimados e molhados pela novidade
que presenciariam. Os nossos pais, pobres inconsequentes, nunca mais nos conteriam
a razão sentimental, pois passaríamos a saber de tudo do futuro promissor e do
apocalipse depois de finda a cena.
De repente os
meus olhos bastaram-se em alcançar somente a sua beleza. As crianças, numa
mágica do amor, evaporaram. Qualquer coisa, pensei, digo que o sol as engoliu
num rompante ou que se abriu uma cratera vulcânica nos azulejos frágeis da piscina
do clube mal cuidado, levando-as todas ao centro cósmico Universal. Qualquer coisa
assim, eu diria. Todavia, penso que, em verdade, em nada pensei. Fiquei a
esperar.
A notícia
“Vinícius quer falar com Beatriz” era de uma grandeza torpe e ecoava no meu
corpo pequeno. Você, num embaraço revelador, afundava a cabeça para não ter que
suportar a minha espera tão feminina. Não aguentava ficar afundado tanto tempo,
por lógica biológica – não éramos peixes, aliás, você escorpião, eu leão, rimou
– e voltava à superfície com os cabelos ainda mais compridos, por estarem
encharcados, sob a bela cara. Eclipsava-se quase totalmente, somente não por
completo porque, apesar do cloro e da urina, a água gentilmente ainda me
deixava ver você. Depois passei a vê-lo até de olhos bem fechados. Mas antes do
depois, a cena primordial.
Eu já estava
no tédio e na desesperança e você, parecendo ter hidratado a coragem, emergiu
das águas e me disse para eu ficar com você. Era ano 2000, você com doze anos. Onze
anos eu tinha. Você, com seu futuro promissor. Eu, anunciadamente, uma apocalíptica
de amor. Para eu ficar com você, você disse. Disse isto e abruptamente, em
seguida à fala apaixonada daquela sexta-feira de verão em férias, afundou-se na
piscina levemente blue, nadando feito
peixe-menino para o outro canto da piscina longa, comprida e descomunal.
Antes de você
se tornar o homem de quem pouco sei, teve aquele outro acontecimento. Sete anos
depois do ano dois mil.
Você deu três indelicados
socos seguidos na porta do meu quarto para me advertir que entraria. E entrou.
Entrou todo cheio de passos largos, sorriso do gato da Alice, olhos com sombras.
Eu estava deitada na rede cor da rebeldia, laranja e amarela inteira, lendo Rimbaud
– Une saison en enfer. Já era outra
cidade, o sol mal entrava pela janela, tanto pela arquitetura da selva de
concreto, tanto pela época amarga do inverno. Fazia frio e na sua cama faltava
lençol. Você veio me perguntar, fingindo respeito ao que eu carregava no peito,
se por mim não haveria qualquer objeção a seu desejo de querer ficar a ler um
texto para a matéria da faculdade deitado na minha cama. Você na minha cama e
eu na rede. Era para eu estar obstinadamente dedicada aos exercícios de
matemática para passar no vestibular, você, inclusive, cobrava-me os bem malditos estudos burocráticos, mas
eu estava desesperadamente agarrada ao Rimbaud pelas mãos. Talvez para não cair
na tentação dos nossos mau-ditos.
Você leu meia
página do seu texto acadêmico e lamentou-se de dor nas costas, demandando, num
tom óbvio, as minhas mãos agarradas nas suas costas e não em Rimbaud. Você era
um ciumento incurável. Apocalíptica de amor, eu aceitei o seu lamento. Recordo
a cena de você deitado de bruços na minha cama, o hidratante de morango e
champagne da Victoria’s secret concedendo
a dança dos meus dedos sob a sua pele das costas e, da ordem do
irrepresentável, os fascínios de Ella Fitzgerald & Louis Armstrong vinham
do aparelho de som e preenchiam o ar à meia luz.
Naquela noite,
a minha primeira vez, eu escrevi no meu diário que havia ficado grávida. Eu
menti para mim mesma, mas, no profundíssimo corredor vertiginoso da minha
identidade, eu sabia ser isto uma verdade. Em uma carta absurda que enderecei a
você, depois que chegou de uma viagem para o exterior (de mim), eu descrevi o amor
que carregava por você como sendo algo fisiológico na distância de meu início.
Era exagero apocalíptico: os dois pontuais acontecimentos, agora epistolarmente desmascarados do rosto da
minha ilusão, foram da ordem do encontro irremediável.
Aconteceu que
o seu embaraço de menino fincou, melhor dizer, reconheceu em mim uma delicadeza
com a potência máxima da feminilidade, que eu já sentia pertencer a mim,
contudo, recusava-a por culpa precoce. Eu, tão corpo pequeno, boiando sob as águas
sensuais da descoberta, carregava antecipadamente uma culpa e um juízo que a
mim não cabia tanto pesar. Foi quase como se você tivesse me revelado a mim. E
a vida, anos depois, por um acaso que desconfio, pôs-me a morar num quarto ao
lado do seu.
Nesta época,
eu, afogada na confusão da razão sentimental, entre culpa fulminante e desejo
ardente, meio Antígona, misurderstood
da cabeça aos pés, estava outra vez esquecida da delicadeza. E o seu olhar,
você não soube disto pois eu não pude lhe contar, embora eu nunca tenha
duvidado da sua sensível inteligência, desnudava-me de tal maneira que, ao seu alcance perceptivo, era
insuportável ser a mentira apocalíptica que eu mesma fecundei em mim propositalmente.
Impossível manter a farsa em presença sua, você que fez parte do encontro
irremediável. Então, a cena: uma criatura nadando contra a maré forte, imponente
e imperturbável da natureza maior: de.li.ca.de.za.
O filho não
veio, eu apocalipsei sempre mais, o
amor eclipsou. Mudei de quarto, de
bairro, para bem longe de você. Contudo, de olhos bem fechados, eu fico
pensando em que homem você se tornou agora que eu me sei mulher; e que você pouco
sabe disto. Nós somos insabidos um ao outro. Eu não pude lhe contar. Quer me falar
algo? Não se afunde. Não se eclipse.
Não se afunde,
peixe-homem. Não se eclipse oculto na luz do verão. Não se afund. Não se eclips.
Não se afun. Não se eclip. Não se afu. Não se ecli. Não se af. Não se ecl. Não
se a. Não se ec. Não se. Não s. Não. Nã. N. (Silêncio)
.
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